Por Eugênia Rodrigues – Porta-voz da campanha

Nossa história começa em 2013…

Naquele ano, começaram a pipocar na mídia notícias acerca de supostas “crianças e adolescentes trans”. A mais conhecida era Shiloh, filha das celebridades Brad Pitt e Angelina Jolie. Aparentemente, uma criança seria uma menina se gosta de bonecas, vestidos, cabelos longos e maquiagem e um menino se preferir cabelos curtos, cara lavada, roupas esportivas e super-heróis.

 

(Fonte: vídeo da família no Youtube. A história de Ryland também foi anunciada no Programa Fátima Bernardes (2017), na Hypeness (2014) e na Revista Fórum (2014)).

Aquilo me chocou. Todas e todos sabemos que crianças, adolescentes e adultos apresentam ao longo da vida uma grande variedade de comportamentos; alguns mais dentro do padrão, outros fora. Sabemos também que na infância não distinguimos o imaginário do real e o “parecer” do ser e que a adolescência e o início da vida adulta são fases complicadas para todo mundo. Não é fácil se acostumar com as mudanças do nosso corpo, os hormônios a mil, as crises, brigas com os pais, a pressão estética, a sexualidade, a sensação de não se encaixar… Imagine então quando se é muito diferente do que se espera de um garoto ou de uma garota! Além do que, podem haver motivos ainda mais profundos para alguém, em qualquer idade, rejeitar o próprio corpo. Eu entendia que os personagens das matérias acreditassem que seriam de outro sexo, mas não compreendia porque os “especialistas em identidade de gênero” estavam legitimando essa crença e recomendando que nós também a legitimássemos. O que estava acontecendo?

“Jazz toma hormônios desde os 11 anos. Conversamos muito sobre sua vida e seu futuro, sobre o desenvolvimento de seu corpo. Ela não quis desenvolver características masculinas, e eu lhe disse ´não se preocupe, a mamãe vai garantir que você nunca se pareça com um garoto.”, declarou a mãe da celebridade adolescente Jazz Jennings (Folha, 2015). “Os bloqueadores hormonais são reversíveis, portanto, caso tenha vontade, posso suspender o uso”, garantiu Jazz (UOL 2015). “Pais de crianças com desordem severa de identidade de gênero e médicos que tratam delas dizem que não fazer nada pode ser perigoso e que deixá-las passar pela puberdade ´no gênero errado´ pode resultar em depressão profunda e suicídio”, afirmava o G1 em 2015.

Então médicos agora estavam aplicando hormônios artificiais em menores de idade no Brasil e no mundo? Num momento em que já eram conhecidos os efeitos colaterais de outros hormônios em adultos, como os da pílula anticoncepcional, da “terapia hormonal na menopausa” e dos anabolizantes derivados de testosterona? Como isso foi introduzido tão rapidamente no país? Quais os efeitos colaterais? Seria esse “tratamento” uma unanimidade entre os profissionais? Quais os riscos do Projeto de Lei João Nery de Identidade de Gênero, que não previa sequer idade mínima para essas “terapias”?

Havia muitas perguntas a serem respondidas, mas um clima hostil contra quem ousasse fazê-las. Os materiais que transativistas me enviaram à época “para que eu me educasse” me pareciam mais ideológicos que realmente científicos – inclusive os artigos acadêmicos. Assim, iniciei uma profunda pesquisa teórica e prática acerca do fenômeno “trans”, devorando livros, artigos, matérias jornalísticas, legislações, li e ouvi pessoas que que se autoidentificavam como “transgênero”, que já cogitaram fazê-lo e também as que deixaram de se autoidentificar como tais. Três anos depois, em 2017, já havia acumulado um conhecimento razoável sobre o assunto e participei da criação daquele que, acredito eu, foi o primeiro site no Brasil dedicado a criticar estas modificações corporais em corpos infanto-juvenis, o Não Existe Criança Trans (que não é mais atualizado, mas ainda está acessível). Também fiz parte do time inicial da  Hormônio Não é Brinquedo, que continua sendo tocada por um grupo de valorosas mulheres, incluindo mães (elas também têm Twitter, Instagram e página no Facebook). Finalmente, em dezembro desse mesmo ano, entreguei meu gigantesco trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social da UERJ intitulado “´Fora da caixa´: a construção da ´criança trans´ no jornalismo brasileiro”. Nele, tracei um percurso histórico de como a categoria “trans” foi criada a partir da medicalização de comportamentos fora do padrão e dos interesses econômicos da classe médico-farmacêutica, mostrando também como a mídia brasileira e internacional desempenharam um papel fundamental na legitimação da ideia de “nascidos em corpos errados”. Espero no futuro resumi-la, transformá-la num artigo e publicá-la.

Em 2018, eu e outras mulheres e homens questionadores nos demos conta de que precisávamos agir formalmente junto às instituições e que para isso precisávamos de uma plataforma que não fosse anônima, que tivesse um representante com nome e sobrenome para, por exemplo, dialogar pessoalmente com políticos. Assim, nasceu em outubro daquele ano (mês das crianças! <3) a No Corpo Certo. Estreamos um canal no Youtube, fizemos um perfil no Twitter e quando sobra tempo ativamos nossas páginas no Facebook e Instagram. Também fizemos um Medium, que não mais será atualizado; nossos textos serão publicados unicamente aqui. Ao longo de 2019, elaboramos e encaminhamos aos deputados e deputadas de São Paulo um requerimento  para que as intervenções médicas previstas no Projeto de Lei Transcidadania não sejam realizadas em menores de 18 anos. Esse projeto ainda em tramitação e nós contamos com você ao nosso lado nessa batalha.

Finalmente, em novembro de 2019, lançamos este nosso cantinho no ciberespaço, Espero que os nossos textos te sejam úteis e que possamos trocar ideias de forma amistosa e racional. E que esta introdução seja o início de uma bela – ainda que virtual – amizade 🙂

Um grande abraço,

Eugênia.

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Ilustração @raposarte