A minha primeira graduação foi em Direito. Não sou advogada e anos depois eu faria jornalismo, mas aprendi  como funcionam as instituições e muitas outras lições valiosas.

Uma dessas lições foi dada pelo saudoso professor Celso Mello (não confundir com o ex-Ministro do Supremo Celso de Mello). Referência em Direito Internacional, Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello era um dos meus mestres favoritos e entremeava seus ensinamentos com histórias incríveis passadas no mundo todo. Era dono de uma cultura vastíssima, a qual derramava com leveza e humor – a sisuda foto abaixo não está à sua altura. Celso Mello era todo verve, suspensórios, cabelos ondulados e olhos claros e amorosos.

Em uma de suas aulas, ele fez à turma a pergunta: existiria algum direito absoluto?

Seguiu-se uma discussão animada; alguém citou o direito à vida, o que foi prontamente repelido (talvez por ele, talvez por outros alunos) sob o argumento dos momentos de guerra declarada; um outro falou no direito a não ser agredido, mas alguém lembrou da legítima defesa; talvez alguém tenha falado em direito à saúde, mas, convenhamos, a liberdade individual permite que todos nos empanturremos dias a fio de torresmo e cerveja. O professor observou a discussão com um silêncio divertido. No final das contas, depois de muita balbúrdia, ele pediu a palavra e respondeu, tranquilamente:

“O direito a não ser torturado”.

Um silêncio caiu sobre a sala. Ninguém conseguiu citar alguma situação em que um ser humano devesse ser torturado. Meu querido professor ganhou mais uma.

Hoje, tantos anos depois, eu poderia lembrar do direito de não ser estuprada; por outro lado, embora os códigos os coloquem em lugares diferentes, poderíamos teorizar que o estupro não deixa de ser uma forma de tortura. Eu citaria hoje também o direito de amadurecer, coisa que certamente nem o professor, nem eu, nem meus colegas da UERJ imaginaríamos que um dia seria ferido no Brasil e no mundo; conforme vocês sabem, médicos de clínicas e ambulatórios de “identidade de gênero” obtiveram em diversos países o “direito” de prescrever e aplicar hormônios bloqueadores da puberdade em meninos e meninas cujos corpos são perfeitamente saudáveis, mas que cometeram o “crime” de terem comportamentos “incongruentes ao gênero”. 

Pensei muito naquela aula durante o último final de semana. Embora o foco da No Corpo Certo seja o impacto do “direito à identidade de gênero” na saúde, em especial das crianças e adolescentes, e esse tópico sozinho já me consuma muito tempo, existem situações em que nós precisamos parar tudo o que estamos fazendo para gritar ao mundo o que está acontecendo. E esse momento é agora, com o STF, na ADPF nº 527,  permitindo a presos que escolham ficar em penitenciárias masculinas (dentro ou fora de alas especiais para eles) ou… penitenciárias femininas (ainda não houve julgamento final, mas está valendo a liminar nesse sentido; estes presos estão gozando desse direito). A ação foi proposta pela ABLGT, a “Associação Brasileira de Lésbicas, Gays e Transgêneros”. É irônico, pois muitas mulheres ainda acreditam que a sigla “LGBT” está ao lado delas, elas não vêem que o “direito à identidade de gênero”, ao contrário do direito à orientação sexual, retira direitos delas e as apaga enquanto uma classe separada de seres humanos. Elas falam, ingenuamente, em direitos das mulheres “e LGBT” e, com raras exceções, nem mesmo aquelas que alegam representá-las lhes explicaram por que todos nós deveríamos ter um olhar crítico, para dizer o mínimo, sobre esta sigla corporativa. 

(#pracegover : print da decisão do STF em 15/9/2021).

Eu gostaria de dividir com vocês uma segunda experiência pessoal agora. Esta, nada agradável.

Eu já fui obrigada a dormir, muitos anos atrás, com um homem desconhecido. Em um dos dias que fiquei hospedada num hostel em Barcelona: fui informada que, naquela noite em espefícico, eu havia sido erradamente registrada num dormitório unissex – e que haveria um hóspede homem no local. Eu reclamei, mas me foi dito que o hostel estava lotado e que só no dia posterior eu poderia voltar ao dormitório feminino. Sem saber o que fazer, e entre sair dali e procurar, em cima da hora, um hotel que não comprometesse meu orçamento e arriscar… escolhi a segunda opção. Me arrependeria profundamente.

Fiquei o maior tempo possível na rua e voltei bem tarde. Encontrei o hóspede numa das camas de baixo dos beliches, aparentemente dormindo, e escolhi uma cama do alto de um beliche que obviamente não era o dele. E ali fiquei, paralisada e apavorada com o que poderia acontecer.

O dia amanheceu e fui para a rua sem que o hóspede tivesse feito nada de errado; sequer sei se acordou. Mas foram horas simplesmente… torturantes.

Torturantes. Esta é a palavra. Eu não estou aqui dizendo que esse fato tenha configurado o crime de tortura e nem comparando o meu sofrimento com o de pessoas fisicamente torturadas sentiram; bem sei do privilégio que tive de ter tido ao menos a chance de escolher não entrar naquela quarto e também de ter, em último caso, caso o pior acontecesse, a chance de abrir a porta do quarto e fugir – ou, ao menos, tentar fazê-lo. Estou apenas pontuando que, como mulher, e utilizando a palavra em seu sentido leigo, me obrigar a dormir com aquele hóspede foi uma tortura. 

A situação atual da ADPF aponta, até agora, para a vitória da “ABLGT”. Não tenho conhecimento de que os defensores públicos, procuradores e o deputado federal que funcionam como amici curiae (“amigos da Corte”) estejam lutando para reverter a liminar. Isso significa que a mesma sensação torturante que eu tive naquela noite e que durou algumas horas será a sensação, durante meses ou anos, de milhares de mulheres encarceradas e de agentes penitenciárias no país. Os riscos abrangem, também, os bebês nascidos no cárcere. Elas não têm a escolha de ir para outro lugar, elas não têm como fugir. Elas estão, sim, sendo torturadasUm resultado final favorável à “ABLGT” e mesmo o simples deferimento dessa liminar institucionaliza a tortura no Brasil.

O Parecer nº 8/2013, confirmado pela Resolução nº 2265/19, do Conselho Federal de Medicina e seguido por ambulatórios de “identidade de gênero” no país, institucionalizou a violência médica contra os corpos de crianças e adolescentes. A ADPF nº 527, por sua  vez, igualmente inspirada pela ideia de “identidade de gênero”, institucionaliza a tortura contra mulheres. Grupos poderosos driblam o processo legal democrático e transparente e utilizam de medidas administrativas e decisões judiciais que nós, enquanto população, temos menos chances de acompanhar e reverter. Ainda mais quando órgãos públicos e ocupantes de cargos que deveriam questionar estas mudanças, como políticos, promotores, procuradores e defensores, ficam entre o silêncio conivente e o apoio a estas ações. As melhores intenções, que, certamente, inspiram tantos eles, jogaram as mulheres no inferno do fim de seus espaços separados por sexo.

Se você tivesse me dito, há apenas dez anos, que um homem seria encarcerado com uma mulher por ele se acreditar uma mulher, ou se meninos e meninas de seus onze ou doze anos estavam sendo ensinados que são alguém do sexo oposto, eu não teria acreditado em você. Eu teria te dito que só num estado de histeria coletiva isso poderia acontecer. Hoje, não só reconheço esse estado, como recomendo fortemente que todos se debrucem sobre fenômenos como histerias coletivas, contágio social, psicose em massa, programação mental e seitas. Um dos vídeos que vi recentemente, e gostei muito, foi  “MASS PSYCHOSIS: How an entire population becomes Mentally ILL “ou “Psicose em massa: como uma população inteira se torna mentalmente adoecida”. 

A institucionalização da tortura é a morte do Direito. É quando as instituições admitem aquilo que, nas palavras do professor Celso, é inadmissível. E o caminho de volta à sanidade, será longo; considerando que os recursos dos poderosos e a credulidade humana são, ambos, infinitos, provavelmente morreremos antes de percorrê-lo por completo e dizermos, com todas as letras, aquilo que todos sabemos: que somos homens ou mulheres, meninos e meninas apenas, e que um não “vira” o outro – nem mesmo quando mudamos as palavras que utilizamos. Esse caminho de volta exigirá que muitas crianças e adolescentes ainda sejam castrados quimicamente e que muitas mais mulheres sejam agredidas, estupradas e até mortas no cárcere. De qualquer forma, a fim de que cheguemos mais rápido a esse ponto, precisamos fazer, cada um de nós, a nossa parte. Eu sugiro que você também escreva ao Supremo Tribunal Federal a fim de que estas mulheres tenham respeitado o direito de não serem torturadas.