Caras e caros,

 

temos a satisfação de encaminhar a vocês a matéria do jornal O Globo sobre destransição datada de 27 de novembro de 2021. Ela pode ser lida aqui no link original e a entrevista que a repórter Giulia Vidale Ribeiro fez comigo, Eugênia Rodrigues, porta-voz da campanha, foi conduzida de maneira respeitosa e ética. A foto escolhida pelo veículo é da destransicionada britânica Keira Bell, a mesma jovem que retratamos na ilustração, reaparecerá em outros textos sobre este tópico e cuja fala histórica reproduzimos no nosso canal do Youtube .

Uma das perguntas mais comuns sobre este assunto e que foi feita pelo jornal é se a destransição seria um fenômeno raro: “As poucas estatísticas existentes indicam que cerca de 2% das pessoas transgênero mudam de ideia e desejam voltar ao gênero de nascimento”. De fato, se você lançar o tema em sites de busca provavelmente encontrará esse número, como por exemplo nesta matéria da BBC e em uma das traduções que publiquei no “irmão mais velho” da No Corpo Certo, o site Não Existe Criança Trans: a reportagem “Os destransicionários – eles eram transgêneros, até não serem mais“ inclusive explica de onde veio essa taxa:  “um estudo de 50 anos atrás vindo da Suécia descobriu que apenas 2,2% das pessoas que transicionaram, mais tarde, sentem ´arrependimento da transição´”. Contudo, estes estudos  costumam ter sérias falhas metodológicas como a de deixar de fora um grande número de pacientes, seja porque eles não foram localizados, não quiseram responder aos questionários, faleceram etc. Além do mais, o próprio O Globo alerta que esse número está defasado: “(…) Um estudo recente realizado pelo Instituto Fenway e pelo Hospital Geral de Massachusetts mostrou que 13% das pessoas transgênero, em algum momento, decidiram ´destransicionar´”. Se uma taxa de 2% já deveria chamar a atenção – pergunte a um economista se 2% de crescimento de um país é irrelevante – imagine quando esse número pode ser mais de seis vezes maior!

Quanto ao quadro brasileiro, é dito que “Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que esses casos existem, mas são raros, especialmente no Brasil” (…) “Aqui no Brasil, os casos de “destransição” de pessoas atendidas no sistema público são raríssimos. No sistema privado, isso pode acontecer com mais frequência´” (…) “O médico catarinense José Carlos Martins Júnior, referência em cirurgias de adequação sexual em pessoas trans no país e no exterior, já realizou mais de 400 operações. Segundo ele, nenhuma paciente sua se arrependeu. Martins Júnior, no entanto, diz saber de casos de arrependimento, em especial de pessoas que optaram por operar fora do país”.

Gostaria de ter acesso aos estudos e estatísticas oficiais realizados no Brasil nos quais os “especialistas ouvidos” se basearam. E fiquei imaginando o que os destransicionados brasileiros  responderiam; já ouvi de alguns que jamais comunicaram ao médico que os atendeu seu arrependimento porque este médico era, precisamente, a última pessoa que queriam ver pela frente. Além de tentar curar suas feridas físicas e psicológicas, estes indivíduos são perseguido como se fossem ex-membros de uma seita fundamentalista; nesta matéria da UOL  de 2018, conhecemos a história da “detrans” pernambucana Luck Palhano:

“Por causa de todo esse ativismo, não foi compreendida quando decidiu parar a transição. Mesmo explicando seus motivos, recebeu ameaças de morte, foi acusada de ´fingir ser homem” e de ter se tornado feminista radical. ´Eles se sentiram traídos. E ficaram com medo de perder algumas garantias de direito´, justifica”.

Diante do que existe em termos de estudos científicos, da situação em que estes pacientes estão e do clima de intimidação reinante, você ainda acredita que esses números sejam pequenos? Se você soubesse que entre 2% e 13% das aeronaves de uma companhia aérea caem, você não a consideraria perigosa? Você não escolheria outra forma de chegar aonde deseja e, se conhecesse alguém disposto a adquirir uma passagem, não tentaria convencê-lo a procurar outra? René Jax, que aparece em nosso canal do Youtube, escreveu um livro com o título “Don´t get on the plane!” (“Não entre no avião!”) no qual narra sua experiência de décadas como “transexual” e denuncia a medicina de “gênero” como abuso médico. O subtítulo da obra é: “Why a sex change will ruin your life”: “Porque uma mudança de sexo irá arruinar sua vida”.

Conforme o jornal reconhece, “Há poucos dados científicos disponíveis sobre ´destransição´– um grande problema que deveria receber mais atenção no Brasil e no exterior”. A pergunta é: por que os médicos do mundo todo, inclusive do Brasil, não registraram, analisaram e publicaram esses dados ao longo das décadas? Afinal, médicos vendem estes serviços de modificação corporal há quase 100 anos. Os realizados no pintor Einar Wegener, cuja vida foi retratada no filme “A Garota Dinamarquesa”, se deram na década de 30. Em solo pátrio, eles acontecem legalmente desde os anos 70. Provavelmente a maioria dos países do mundo hoje em dia os permite – alguns até mesmo os financiam usando dinheiro público, como é o caso do Brasil e do Reino Unido. Por que então médicos não elaboraram dezenas, centenas de estudos, aqui e lá fora sobre esse tema? Estudos que acompanhem os pacientes ao longo das décadas e que registrem acontecimentos como destransição, arrependimento, suicídios tentados e consumados e indicadores de saúde mental e qualidade de vida? Dados que sejam disponibilizados para toda a sociedade, com a maior transparência possível, em sites oficiais como os dos Ministérios da Saúde? Que possam ser lidos pelos pacientes e suas famílias a fim de que a decisão de assinar um Termo de Consentimento Informado seja  realmente informada? 

Pense: a quem interessa que esses dados sejam escassos? A quem interessa a crença de que esse é um fenômeno “raro”, a quem interessa que os destransicionados sejam mantidos em silêncio?

Passemos agora a outro trecho da matéria do Globo: “Mais de 80% das que se arrependeram disseram que foram pressionadas por fatores externos, o que deixa clara a necessidade de aumento do combate ao preconceito”. Mesmo quando se reconhece os resultados negativos deste “tratamento”, a culpa nunca é dele e sim da sociedade “preconceituosa”.

Não, não é um “preconceito” dizer a verdade. O erro foi da medicina em,  diferentemente do que faz com outros pacientes em sofrimento ou confusão com a realidade material e ou seus corpos (como anoréxicos, bulímicos, praticantes de automutilação etc.), legitimar a crença numa impossível mudança de sexo. O erro foi naturalizar e até celebrar com holofotes, aparições televisivas e likes “pela diversidade” a dissociação corporal. O erro foi direcionar pacientes para modificações corporais caras, irreversíveis e com sérios efeitos colaterais, foi obrigar a sociedade a redefinir o que são homens e mulheres ao ponto de nos criminalizar com acusações de “transfobia”. O erro foi a ideia de “identidade de gênero” (“T”) à orientação sexual (“LGB”), através da invenção da sigla corporativa “LGBT”, apagando o sexo como critério definidor e por conseguinte destruindo os espaços separados por sexo, implementando uma política antimulheres e antimeninas da qual a mais recente vítima é uma encarcerada com sérias questões mentais; seu algoz é um homem que se declarou mulher e foi alojado na mesma cela que ela – depois de estuprar uma garotinha de apenas 12 anos.

Não, não é um “preconceito” você basear as suas definições de homem e mulher no real do corpo e não em sentimentos (“identidade de gênero”). Em vez de jogar a culpa pelos maus resultados nos 99,9% de habitantes do planeta que nada têm a ver com essa indústria, os especialistas deveriam se responsabilizar pelo tratamento que escolheram oferecer, cujos danos, seja para os pacientes, seja para todos nós, não mais podem ser ignorados.

Diante desse quadro, é surpreendente que ao final da matéria do Globo um onipresente senhor insista que “o adolescente já tem uma noção muito melhor de si”. Não, doutor: crianças e adolescentes são seres humanos em formação. E é uma pena que, embora o jornal mencione que para outros profissionais “o ideal seria esperar a maioridade legal para iniciar os tratamentos”,  estes não tenham tido o mesmo espaço e nem mesmo possamos saber seus nomes. Esperamos que eles tenham a coragem de assumir publicamente seus posicionamentos e reverter a tragédia que o “modelo afirmativo de gênero” causou no SUS; em nossa escuta com pacientes, familiares e amigos, verificamos que apenas os que podem pagaram por consultas na rede privada conseguiram um atendimento fora desses cânones .

Ainda que os ambulatórios de “identidade de gênero” garantam oferecer um “acompanhamento multidisciplinar”, ele se dá, como o próprio nome desses estabelecimentos denota, de acordo com o dogma das invisíveis “identidade de gênero”. Tanto é um dogma que, ao contrário do que acontece em outros ramos da medicina, não admite questionamentos; a depender do país, os “hereges” podem ser condenados cível, administrativa e criminalmente por “transfobia”, ser demitidos das clínicas, terem suas licenças para clinicar cassadas e, caso sejam descobertos, sofrer linchamentos e “cancelamentos”. No Brasil, a punição aos psicólogos pode vir do próprio Conselho Federal de Psicologia, que sacramentou a crença na existência de “identidades de gênero” na Resolução nº 1/2018Na retrocitada matéria da UOL de 2018, em que Luck Palhano foi entrevistada, eu mesma alertei e repito agora, em 2021: “O debate sobre o tema, que é urgente e necessário, está sendo silenciado por meio de ameaças, censuras e até agressões físicas. Precisamos nos engajar num diálogo aberto e racional sobre as consequências das hormonizações e cirurgias. As crianças vão cobrar mais tarde o que estamos fazendo com elas”.

Assim, reiterando a importância desta matéria e convidando você a ler minha contribuição, espero que o jornal volte ao tema. Nós certamente voltaremos; há outros artigos recentes sobre destransição que merecem ser comentados aqui e o serão. A voz dos e das destransicionadas será ouvida – e eles têm muito a dizer.