A mulher esculpida na pedra
(Autoria do texto de “Nessa”. Thread original em inglês aqui e link fixo aqui. Tradução e escolha de título por Eugênia Rodrigues, jornalista e porta-voz da campanha No Corpo Certo).
Às vezes, quando fico desanimada com a situação das mulheres no mundo todo, quando eu sinto que “não adianta”, eu lembro de uma coisa:
Em Göbekli Tepe (um sítio arqueológico neolítico, uma das mais antigas estruturas feitas por humanos) tem uma imagem toscamente esculpida de uma mulher.
Eu digo “toscamente esculpida” para separar esta imagem de uma mulher de todas as outras esculturas nesse sítio.
O resto das imagens em Göbekli Tepe é muito mais formal – profissional, centrado. E masculino.
Cada uma das outras representações de animais ou humanos em Göbekli Tepe é de um macho.
Mas o desenho da mulher é diferente do resto. Ele foi adicionado depois. Uma obra de grafitagem, rascunhada nas paredes por alguma mulher anônima.
Em seu desenho, a mulher está em trabalho de parto. Seus seios são mostrados pendurados para o lado.
É uma imagem simples – quase uma caricatura, ou um rabisco. Mas nunca deixa de me trazer fortes emoções.
Há quase 10.000 anos atrás, rodeadas de imagens masculinas, algumas mulheres corajosas desenharam a representação delas mesmas na parede. Agora, ela está num museu.
Nós não sabemos nada sobre a cultura dela, ou a vida que ela teve (tecnicamente nós não sabemos que a artista é uma mulher, mas assim… na boa…).
Nós não sabemos quantos anos ela tinha, ou quando ela morreu. Nós não sabemos nem mesmo as circunstâncias em que ela esculpiu – tarde da noite? sozinha? raivosa?
Eu gosto de imaginar que um grupo de amigas estava socializando há cerca de 9.000 anos atrás. Fazendo piada sobre os homens, revirando os olhos sobre como tudo lá tinha um óbvio pênis.
Suas amigas a incitaram, fazendo um escudo protetor em volta dela enquanto ela rapidamente rabiscou na parede. Uma pequena rebelião.
Eu disse antes que nós “não sabemos nada” sobre a cultura em que ela viveu. Mas isso não é bem verdade, não é?
Nós sabemos como as mulheres têm sido tratadas em todo o planeta por milhares de anos. Como cada uma das outras imagens naquele sítio maciço e bem-construído era masculina. No neolítico pré-cerâmico, as mulheres eram quase que certamente propriedades. Mantidas longe da liderença. A elas, era negado o poder.
Qualquer que seja a mulher que tenha esculpido aquela ilustração, gosto de pensar em como ela devia ter visto “o inevitável” para mulheres.
Como ela poderia imaginar a liberdade que algumas mulheres têm agora?
E ela viveu e morreu. Seus filhos também. Milhares e milhares de anos de História humana se passaram, e seu desenho foi preservado unicamente pela graça da Mãe Natureza.
Um pequeno fragmento de evidência de que as mulheres existiram espalhado entre os restos do sítio que é uma herança “do mundo”.
Eu gosto tanto desta história porque eu gosto de pensar no que ela representa no nosso espírito. Como as mulheres desafiantes *sempre, sempre* estiveram lá – mesmo nas sociedades humanas mais primitivas e brutais, em que os deuses, os líderes, a arte, a cultura e as histórias eram todas centradas nos homens.
Mesmo em lugares e épocas quando nós éramos reduzidas a uma propriedade particular, consideradas objetos, tendo negadas escolhas sobre o que acontecia em nossas vidas… há um inconquistável espírito humano nas mulheres, um espírito que os homens passaram eras tentando – mas falhando – extrair de nós.
E eu acho que esta pequena escultura de uma mulher dando à luz em Göbekli Tepe, cercada por todas essas imagens de homens, é a encarnação desse espírito.
Um pequeno “dane-se” aos patriarcas dela. Um jeito de dizer “eles não deixam a gente entrar na História, mas nós estávamos aqui. Geralmente fazendo isto”.
E quando eu penso nela, e daquele momento desconhecido em que alguma mão rabiscou a mulher em Göbekli Tepe, aquela pequena fagulha para continuar tendo esperança retorna.
Nós não podemos parar de tentar nunca. Nós devemos isso a ela, às suas antepassadas. Nós devemos isso às nossas irmãs que estão em situações abomináveis agora.
Então, sim, às vezes as coisas parecem bem áridas para as mulheres.
Mas eu decidi que, mesmo que eu não veja os resultados, mesmo que eu nunca consiga mudar nada durante a minha existência, eu vou *sempre* tentar ser aquela mulher para alguém, tentando esculpir para nós um lugar no mundo.