Caras e caros,

 

no dia 12 de março, celebrou-se o #DetransitionAwarenessDay ou #DiadeConscientizaçãoSobreDestransição. A iniciativa foi da rede internacional Genspect, com a qual colaboramos e que congrega profissionais de saúde, famílias, pessoas destransicionadas, jornalistas… Naquele sábado, me emocionei assistindo à conferência que eles fizeram e na qual os detrans (“detransitioned“) foram protagonistas. Eles falaram sobre começaram a acreditar que “seriam ´trans´”, a influência da internet, a conexão com o autismo, o quanto os profissionais de saúde de clínicas, ambulatórios e consultórios de “identidade de gênero” falharam com eles… Cada vez mais, fica claro que aqueles que fornecem um cuidado realmente digno desse nome não estão no nicho de mercado que hoje se denomina de “saúde LGBTQIAP+”.  Queria muito que a No Corpo Certo tivesse um centésimo das verbas públicas e privadas que organizações da sigla “LGBQIAP+” têm e que uma equipe de profissionais já tivesse traduzido e legendado o vídeo do evento (que já está disponível no Youtube) para vocês. 

Por causa dessa data, uma destransicionada que eu conheço publicou sua história em um post só para amigos no Facebook. Nós estamos em contato há um tempo; ela foi atendida em consultórios particulares e num ambulatório do Hospital das Clínicas da UFRGS, em Porto Alegre, através do programa PROSEX. E, no Twitter, me mostraram o depoimento (1) de uma outra destransicionada brasileira que eu ainda não conhecia, um dos muitos compartilhados nessa rede social naquele dia com a hashtag #DetransAwarenessDay e que me levou a solicitar a ela um texto para publicação. A primeira jovem assina como “Olga” e a segunda, como “Noah”, que eu pensava ser um nome masculino mas que é unissex e também o “nome do momento” entre esta população específica de meninas. Aliás, um dos sinais de que estamos vivenciando um contágio social é tantas garotas escolherem os mesmos nomes; me lembro que, por volta de 2013-2015, houve uma leva de “Bernardos”, depois de “Erics”, “Eriks” e “Ericks”… 

 Antes de partir para os relatos, queria lembrar que, dentre os entrevistados no estudo sobre destransição conduzido pela Dra. Lisa Littman, “a maioria (55.0%) sentiu que não recebeu uma avaliação adequada de um médico ou profissional de saúde mental antes de iniciar a transição e apenas 24.0% dos respondentes informou aos profissionais que eles destransicionaram” (“The majority (55.0%) felt that they did not receive an adequate evaluation from a doctor or mental health professional before starting transition and only 24.0% of respondents informed their clinicians that they had detransitioned) (2), grifos nossos. Isso torna ainda mais premente a necessidade de revogarmos a Resolução nº 1/2018, do Conselho Federal de Psicologia: em tese, qualquer psicólogo ou psicóloga que busque, ainda que da maneira mais delicada possível, aprofundar os motivos do paciente pode ser acusado de questionar a soberana “identidade de gênero”. Torna imperativo, também, que ao menos os ambulatórios de “identidade de gênero” financiados pelo SUS monitorem e divulguem os resultados a longo prazo obtidos junto aos seus pacientes, não sendo mais aceitável a narrativa de que a destransição seria “um fenômeno excepcionalmente raro”. Não é.

Com vocês,  “Olga” e “Noah”. Espero que, no futuro, todos e todas que se reconciliaram com seu corpo possam contar suas histórias em segurança, utilizando seus verdadeiros nomes.

 

Abraços e até a próxima.

 

Eugênia Rodrigues

Jornalista

Porta-voz da campanha No Corpo Certo

(1) [ https://twitter.com/sapficheskiy/status/1502785196575408134 ]

(2) Littman L. Individuals Treated for Gender Dysphoria with Medical and/or Surgical Transition Who Subsequently Detransitioned: A Survey of 100 Detransitioners. Arch Sex Behav. 2021;50(8):3353-3369. doi:10.1007/s10508-021-02163-w [ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8604821/ ].

***

DETRANS AWARENESS DAY: 12/03 (“Olga”)

 

No dia de hoje, é complexo falar sobre o meu passado traumático, principalmente porque muitas pessoas não sabem pelo que eu passei; entretanto, não vou ficar quieta e invisível. Não serei silenciada.

 Transicionar foi o maior erro que eu poderia ter cometido na vida; tanto online, socialmente e a partir de um certo momento a quimicamente. Levei muito tempo para aceitar que não foi minha culpa, mas daqueles que eram responsáveis pela minha saúde. O sistema de saúde paternalista falhou comigo: médicos, psicólogos, endocrinologistas, psiquiatras me colocaram numa posição em que eu não tinha outra opção além de odiar a mim mesma.

 A certa altura, me disseram que eu tinha um cérebro masculino – alguém que fez faculdade de medicina e que estava me receitando testosterona – simplesmente devido ao nível naturalmente elevado dela. Mais tarde descobri, falando com uma ginecologista, que era um sinal claro de síndrome do ovário policístico e não de um cérebro masculino, pois não existe isso sem socialização.

 Senti que nenhuma outra coisa me traria alívio de um corpo no qual eu não queria estar até descobrir por mim mesma que o problema não estava em mim, mas na sociedade patriarcal em si. 

 Enquanto os médicos me diziam que a minha felicidade dependia de uma mastectomia dupla, eu lia sobre os estudos e expectativas de gênero através das mulheres online; no início eu lia com ódio na cabeça até que se tornou verdadeiro demais para eu negar. Tive sorte demais de ter um marido que não queria que os médicos me mutilassem – palavras dele. Ele me amava independente de qualquer coisa e eu acreditava nele.

 Como se fosse hoje, me lembro que, durante umas férias na praia onde fui praticamente obrigada a vestir um biquíni, me sentei num sofá com o meu telefone antigo na mão e comecei a escrever os prós e contras de passar por uma mastectomia dupla, já que eu ia passar por essa cirurgia dentro de três meses e sobre a continuação na testosterona. Me dei conta do quão verdadeiras eram as palavras que um dia eu detestei ler e como eu queria desesperadamente escapar de tudo o que veio com o nascer mulher. 

 Não havia nada de errado com o corpo que eu submeti à tortura por mais de uma década. Tudo o que estava errado tinha a ver com o que outros fizeram a ele; é normal que uma vítima de estupro odeie o seu corpo, especialmente quando acontece, pela primeira vez quando ela é uma criança, indefesa e que se culpa. Finalmente, fazia sentido!/

 Encontrei a paz interior quando finalmente decidi destransicionar. Parei com a testosterona e recusei todos os telefonemas do hospital, pois eram gatilhos à nova experiência que eu tinha de mim mesma.

 A parte mais difícil de todas foi lidar com as ameaças e danos reais causados pelos transativistas na minha vida fora do computador; não tanto na minha auto-aceitação uma vez que eles não se interessavam por ela. Ficando longe da internet, eu encontrei um jeito de ser eu mesma sem a interferência deles. 

 Nunca fui um menino, nem um homem: eu fui e sou uma mulher traumatizada. Eu era uma menina fugindo do olhar masculino e de sua sexualização, da misoginia, do abuso e do estupro.

 Perdi muitas oportunidades e essa é a razão pela qual ainda não estou na Universidade, mas minha vontade não morreu. Só agora estou saindo da escola já que eu a  abandonei três vezes devido a questões relacionadas a gênero. Fui aceita como professora numa das escolas de inglês mais conhecidas do meu país e estava tão preocupada com o que os alunos me perguntariam sobre meu sexo que inventei uma desculpa para não ensinar.

 Nessa altura, eu estava mentalmente doente. Eu ainda estou juntando os pedaços.

 A minha vida estava pausada. Pensei que tudo se assentaria depois que todas as minhas cirurgias tivessem sido feitas, incluindo a faloplastia. Estava muito enganada e muitas outras que eu conheço também estavam. Muitas outras estão nesse caminho errado demais e o meu coração está com elas.

 Não perdi apenas oportunidades financeiras; perdi amigos. Muita gente decidiu não falar mais comigo e nem discutir a minha destransição porque eu tinha me tornado uma Feminista Radical. Isso é abandono; aqueles que ficaram preferiram ignorar a gigantesca mudança na minha vida quando eu mais precisava deles. Perdi todos os meus amigos. Eles agora são conhecidos, se é que o são.

 Tornar-me uma Feminista Radical foi o único caminho racional. Ao abolir o gênero, poderíamos abolir esses experimentos que estão sendo feitos em crianças, adolescentes e adultos com problemas de saúde mental. Em vez de auto-ódio nós precisamos aprender sobre autoamor como estávamos fazendo uma geração atrás.

 É fácil virar as costas a um amigo.

 Só se está livre deste culto quando há uma compreensão clara do seguinte: o gênero é um sistema patriarcal concebido por machos para manter fêmeas como o segundo sexo e inferior a elas em todos os aspectos da vida. O gênero não é um sentimento e nem um sexo (existem dois), não é uma identidade, é uma ferramenta para diminuir e controlar as mulheres.

 Não devo seguir um sistema inventado pelo outro sexo para me manter no lugar em que eles acham que eu deveria estar. Eu o rejeito.

 Embora o meu maior arrependimento tenha sido a transição em primeiro lugar, foi a sua destruição que me abriu para a verdade do que é o mundo de uma mulher; eu sou uma, eu não posso escapar disso, por isso é melhor eu ficar esperta sobre como tomar meu lugar neste planeta sem permitir que homens me diminuam.

 A todos as minhas amigas detransicionadas/desistidas, envio abraços carinhosos e apertados!

 

*** 

 

Relato destransição (“Noah”)

 

Olá, meu nome é Noah e sou uma mulher de 21 anos. Entretanto, nem sempre esse foi o meu nome. O motivo? Acreditei ser um garoto durante anos. Imagino que, talvez, isso pareça meio confuso para você, caro leitor – Como assim, uma moça achando que é menino?! O que levou a isso? – Então, deixe-me explicar desde o início.

Tudo teve início na minha puberdade. Meu corpo passou a se desenvolver, o que é esperado de toda a menina. Só que nem sempre essa experiência de mudanças corporais consegue ser confortável para algumas, e esse foi o meu caso. À partir de quando notei que meu corpo estava se transformando, eu passei a me sentir deslocada e estranha. Não queria sair do meu corpo de criança. Não queria ter o corpo de uma mulher. Conforme fui me desenvolvendo, ficava envergonhada comigo mesma, e andava curvada, para esconder meus seios, e também me entristecia só de ver que estava ganhando quadril.

Até o momento, nunca me questionei se eu “era um garoto”, apenas tentava lidar com esses desconfortos sozinha. Entretanto, aos 14 anos, comecei a pensar que talvez não fosse uma menina, “coincidentemente” logo após eu começar a gostar da primeira garota. Nessa época, ao olhar fotos de casais hétero, me imaginava no lugar do homem, e o invejava, não só pelo fato dele estar com uma mulher, mas também o invejava pelo seu corpo: sem curvas, poder andar sem camisa, não ser sexualizado. Com isso, passei a odiar ainda mais os meus seios, e cheguei a desejar ter câncer de mama para poder retirá-los.

Nesse mesmo período, tive contato, pela internet, com a comunidade LGBT e descobri o que era ser transgênero. “Alguém que não se identifica com o gênero que nasceu? Parece comigo!” pensei comigo mesma, já que eu odiava ser vista como garota e odiava as partes femininas do meu corpo. Parecia a resposta que eu procurava. Porém, decidi “não usar esse rótulo” efetivamente, apenas fui lendo mais sobre o assunto.  Apenas aos 17 anos que comecei a me identificar realmente como homem trans (e bissexual).

Lutando contra diversos transtornos mentais nos último ano do ensino médio, fui internada em uma clínica psiquiátrica onde recebi o diagnóstico de disforia de gênero, o que, na minha mente, era a prova concreta de que “eu era trans de verdade”. Aí eu já tinha comprado um binder (faixa que comprime os seios), estava pensando na mudança de nome no cartório – que fiz aos 18 anos – e sonhava alto com a cirurgia de retirada das mamas. Também costumava “militar” sobre os direitos trans nas minhas redes sociais.

Ao trocar meu nome para Noah, pensei que minha disforia fosse melhorar, mas continuei não conseguindo nem olhar para o meu corpo no espelho e me machucando (literalmente), ao pensar que nunca teria um corpo do sexo masculino. E foi assim até o final dos meus 19 anos. Para mim, eu tinha 100% de certeza de ser transgênero e NADA mudava isso.

Contudo, após o término de um namoro com um homem e muita reflexão, descobri que nunca fui atraída de verdade pelo sexo masculino: eu era homossexual. E, com essa descoberta, me questionei “por que não me intitular como lésbica? Isso faz mais sentido para mim, já que sou do sexo feminino de qualquer forma”. Ao dialogar com minha psicóloga e examinar bastante essa questão, finalmente passei a me aceitar como mulher e, com terapia e ao acompanhar outras lésbicas como eu, pessoas detrans e feministas, minha disforia diminuiu gradativamente, até os sintomas quase sumirem por completo. Me entender como lésbica foi a chave para conseguir compreender os diversos fatores (lesbofobia internalizada e misoginia) que me levaram a pensar que eu era transgênero, o que não era claro para mim na época.

Atualmente, perdi vários amigos trans ao parar de transicionar, e transativistas me trataram de forma horrenda por ser detrans e defender a homossexualidade. Porém, sei que tenho várias pessoas ao meu lado, que encontrei nesse caminho de redescoberta, e a sensação de me aceitar como sou é maior do que todas essas adversidades. Para mim, ter aceitado o meu sexo biológico foi mais libertador do que tentar mudá-lo, pois, no fundo, eu sempre soube que aquilo nunca seria verdade.