Caras leitoras e caros leitores,

é com alegria que submeto a vocês o artigo escrito pela psicóloga Angélica Glória. Espero que cada vez mais profissionais de saúde reunam a coragem para se expressar sobre este tema. Neste mês de agosto, o dia da Visibilidade Lésbica, fica aqui a nossa homenagem a elas e a nossa esperança de que profissionais de saúde desenvolvam um olhar mais atento e respeitoso em vez de dar continuidade a práticas medicalizadoras cujos fundamentos datam do final do século retrasado. Ao longo dos anos, recebi inúmeras reclamações de meninas e mulheres relatando a pressão de amigos, professores, colegas de curso e de trabalho para se autoidentificarem como homens.

Estamos com problemas técnicos no envio de e-mails e por isso você não recebeu os textos publicados no mês de julho. Não deixe de lê-los no nosso blog; foram três (este, sobre artigos publicados pela nossa porta-voz, este, para você encaminhar a pessoas de língua hispânica e este, sobre mudança de nomes).

Abraços,

Equipe No Corpo Certo

 

Disforia em mulheres lésbicas – por que odeio meu corpo feminino?

 

Como psicóloga e mulher lésbica, recebo muitas lésbicas em meu consultório e consigo me relacionar com suas experiências quando me relatam odiarem seus corpos ou acreditarem que há algo de errado com eles. Mulheres, de forma geral, sofrem com sua própria imagem e com a aparência de seus seios, barrigas, coxas, vaginas, braços, pernas e todas as partes de seus corpos. Mulheres heterossexuais costumam sofrer por não terem corpos considerados suficientemente atraentes ou dignos do desejo masculino; mulheres lésbicas, por sua vez, costumam adicionar ao sofrimento anterior o ódio aos próprios corpos, sobretudo aos seus seios e são empurradas para a categoria masculina por conta disso. Por que mulheres lésbicas estão sendo empurradas para a categoria homem? O que há por trás disto?

Lésbicas chegam em consultórios de psicólogos e psiquiatras relatando sensações de descolamento ou não pertencimento em relação aos próprios corpos. Muitas odeiam os próprios seios e possuem uma sensação de não identificação com eles, considerando-os como aquilo que as impede de ter uma vida livre e plena como a dos homens. Algumas são levadas às vias de retirá-los de fato por profissionais que seguem a máxima “se algo em seu corpo a incomoda, basta mudá-lo”, lógica essa amplamente utilizada por médicos, psiquiatras e psicólogos ao incentivar mulheres a fazer procedimentos cirúrgicos de estética, dietas de privação de alimento e uso de drogas médicas, entre outras ferramentas danosas à saúde de mulheres – sem nem mesmo iniciar um processo de questionamento sobre a origem desta insatisfação. Na literatura científica, não é raro encontrar casos de mulheres que passam por cirurgias diversas por insatisfações corporais e vêm a ter graves danos à sua saúde, como “Um caso de câncer nos seios em cirurgia de transição de um corpo feminino em masculino durante a andrógeno-terapia” (1) , por exemplo.

Outras mulheres, temendo cruzar com profissionais que alimentariam ainda mais suas insatisfações com a própria imagem e aumentariam seu estresse e angústia, evitam buscar ajuda psicológica com profissionais da saúde e sofrem sozinhas com o horror de habitar um corpo feminino.

Pensamentos suicidas, ansiedade, estado depressivo e outros danos psicológicos são comuns às mulheres lésbicas. A discriminação por sua orientação sexual, a solidão, o abandono de familiares, os ambientes sociais hostis costumam gerar adoecimento emocional nas mesmas (2 ). Aquelas que, além de enfrentar uma vida de lesbofobia e sofrimento emocional por afirmarem sua sexualidade em uma sociedade onde a heterossexualidade é compulsória, ainda experienciam o desgosto, nojo ou desconforto de habitarem o próprio corpo podem ter sua saúde emocional ainda mais desgastada.

Há muitos motivos que podem fazer uma mulher lésbica odiar os próprios seios e dar uma explicação rápida para este ódio poderia sugerir falta de profundidade em cada caso clínico específico por parte de um profissional de Psicologia. Entretanto, neste texto buscarei trazer algumas pistas para pensar no ódio comum a nós, lésbicas, aos nossos próprios seios.

Ter aversão a tudo que remeta a ser mulher ou a feminilidade não pode ser considerado uma doença ou um fenômeno psíquico individual, uma vez que nós, profissionais da saúde, acolhemos e atendemos uma infinidade de mulheres com as mesmas queixas. Quando entendemos o lugar reservado à mulher em uma sociedade patriarcal que reinventa meios para nos adestrar cotidianamente, a chamada autoestima baixa ou a repulsa aos nossos próprios corpos ficam ainda mais compreensíveis.

Enquanto movimentos sociais ditos progressistas iniciam um debate sobre a desconstrução de masculinidades ou feminilidades, o real problema que afeta mulheres continua encoberto: vivemos em uma sociedade falocêntrica que atribui a corpos femininos a categoria de objeto sexual. Nela, peitos, bundas e vaginas recebem um sentido de partes do corpo sexuais e pornificadas, existentes para a satisfação de homens, ainda que fora de uma relação amorosa ou sexual, fazendo com que todas as mulheres tenham alguma questão com o próprio corpo relacionada a isso: ou não se sentem bonitas, gostosas o suficiente para serem consumidas ou sofrem por serem tomadas como objeto de desejos por homens quando não gostariam de ser vistas desta forma.

Mulheres lésbicas recusam-se a aceitar estar no lugar de objeto de desejo masculino, o único permitido para mulheres e isso pode acabar refletindo no ódio aos próprios seios, visto que eles são performados na sociedade como objetos de desejo pelos homens e não como partes de um corpo humano, o que são de fato. Seria realmente tão estranho não desejar ocupar um lugar de não-sujeito? Desejar ter uma aparência que não atraia desejos sexuais diariamente seria uma disfunção de gênero? Mulheres que se recusam a isso, encaixam-se, então, na categoria homens? Quando fazemos afirmações como essas, estamos conscientes de que reforçamos o lugar do homem de sujeito e o da mulher de apenas de sujeitar-se aos outros?

Seguindo os passos de Heidegger, pensador que inspirou a fenomenologia existencial enquanto corrente de atuação de profissionais na Psicologia, podemos compreender que não existe essência que preceda a existência humana, ou seja, o ser-no-mundo, o ser humano, é construído em sua relação com o mundo. Desconsiderando correntes que definem o sujeito antes da sua própria experiência de vida, nos preocupando com aquilo que realmente atravessa a experiência das pessoas, podemos compreender que não há essência masculina ou feminina e que não existe gênero natural de nascimento: o que existe é um conjunto de estereótipos de gênero atrelados a existência de homens e mulheres desde seu nascimento. O gênero é percebido por um indivíduo a partir de suas compreensões acerca desta categoria, compreensões essas que são perpassadas pela forma que a sociedade narra acerca da mesma. Entre esses estereótipos atribuídos a pessoas do sexo feminino podemos destacar o uso de maquiagem, roupas femininas, desconfortáveis, apertadas e sensuais, a servidão, obediência, calma, leveza, a heterossexualidade, a magreza, a vulgaridade, o sexo a serviço de outros, o trabalho não remunerado, a maternidade, o descontrole emocional, a falta de atitude, passividade, a ignorância e a dependência. Levando em consideração que a chamada identidade de gênero é o senso de uma pessoa que reconhece pertencer a determinado gênero: sou uma mulher, uma menina, do sexo feminino ou sou um homem, um menino, do sexo masculino e que a disforia de gênero é uma incongruência entre o gênero experimentado e o designado, que afetações causamos na vida de uma lésbica quando tentamos resolver essa incongruência alimentando a designação dos gêneros e empurrando-na para o gênero masculino, ao invés de compreendermos que o gênero designado é completamente arbitrário, desprovido de essência, com o único intuito de oprimir mulheres e garantir a supremacia masculina?

A disforia é definida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como um problema caracterizado pela incongruência afetiva e cognitiva de um indivíduo com o sexo que lhe foi atribuído ao nascimento, com intensidade suficiente para produzir sofrimento significativo, comprometendo o funcionamento social, profissional ou outras áreas relevantes de sua vida (3). Dizer que uma mulher lésbica apresenta disforia mamária e que sofre por isso pode significar muitas coisas, mas o que, com certeza, perpassa todas elas, é o fato de não estarem alinhadas as expectativas do gênero feminino, ainda que em apenas algumas características de suas vidas.

A lesbianidade, por si só, já é uma orientação sexual que efetua um desvio no gênero feminino, fazendo com que mulheres que se atraem unicamente por mulheres possam acabar recebendo falas misóginas que as apontam como homens. Para além do desvio de gênero efetuado pela sexualidade lésbica, quando mulheres lésbicas assumem uma aparência, postura ou atitude que não é esperada de mulheres, como vestir roupas confortáveis, buscar independência financeira, ter opinião própria e manifestá-la em ambientes sociais, podem sentir que os seus seios ou o seu corpo destoam destas outras características e quererem livrar se dele, para que possam ter uma experiência de liberdade ou de apropriação completa da própria existência.

Compreender que não há incongruência alguma entre ser um sujeito e ser uma mulher, entender que é completamente normal e possível ter nascido do sexo feminino e mesmo assim conseguir seguir caminhos que desemboquem em realizações, se tornar alguém que consegue escolher os próprios passos e que não veio ao mundo para viver de acordo com as vontades alheias pode ser o primeiro passo, difícil, mas necessário, para lidar com a disforia de seios em mulheres.

Além disso, a disforia de seios também é comum em crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual. Essas crianças podem começar a odiar seus corpos e desejar viver “fora deles” desde a mais tenra idade, sobretudo quando a violência que sofreram não é acompanhada de nenhuma punição para quem a fez. Quando a pessoa adulta que causa um dano sexual em crianças não é criminalizada, levada ao ostracismo nem condenada pelo que fez, essas crianças podem chegar a vida adulta sentindo que aqueles que as violentaram não tiveram culpa e que a causa para que a violência sexual tenha ocorrida tenha seja o seu próprio corpo, seus seios ou vagina, através de narrativas comuns de familiares de mulheres que sofreram abuso sexual na infância. Essas mulheres podem crescer desejando não ter nenhuma característica sexual ou de demarcação feminina.

Este é um assunto que de forma alguma se encerra neste pequeno texto, mas aconselho fortemente que mulheres lésbicas busquem profissionais em psicologia por recomendações ou que, ao iniciar um tratamento clínico, possam verificar que estes compreendam a disforia de gênero em mulheres como fenômeno social e não individual.

Um bom profissional não tentará dar dicas arbitrárias para a solução de situações emocionais complexas de mulheres lésbicas nem colocará em uma cirurgia a única possibilidade de qualidade de vida e felicidade para as mesmas.

Fazer vínculo com outras mulheres lésbicas que experienciam o mesmo que você e que rejeitam ser tratadas como doentes ou anormais por conta disto também pode ser interessante. O crucial para que possamos avançar no debate acerca da disforia mamária em mulheres é que psicólogos, psiquiatras e profissionais da saúde, de forma geral, estejam atentos, se atualizando nos estudos do cuidado com mulheres lésbicas, compreendendo suas particularidades, mas sobretudo compreendendo como a misoginia de uma sociedade patriarcal que compreende o signo mulher como sinônimo de objeto de consumo, afeta a experiência corporal de mulheres, mesmo aquelas que não são lésbicas.

Somente com a proliferação de narrativas distintas acerca da lesbianidade é que poderemos ampliar o cuidado com essas mulheres, de forma que as considere enquanto sujeitos que merecem ser ouvidos e cuidados e não consertados ou corrigidos.

(1) “A Case of Breast Cancer in a Female-to-Male Transsexual during Androgen Therapy”. Nishida, Maiko; Ishii, Wataru [ https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/mdl-33468728 ]

(2) Meyer IH. “Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: conceptual issues and research evidence”[ https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12956539/ ].

(3) American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5th ed. Washington: American Psychiatric Association; 2013. doi: 10.1176/appi. books.9780890425596 [ Edição do DSM-5 em português ]