Caras leitoras e caros leitores,
um dos motivos pelos quais a nossa campanha é crítica à sigla corporativa “LGBT” e seus derivados (“LGBTQ”, “LGBTQIAP” etc.) é o fato de que o direito à orientação sexual é não só diferente do direito à “identidade de gênero”, mas incompatível com ele. Ou homens e mulheres são definidos com base no sexo, ou em suas subjetividades; ou sexo existe, e portanto orientação sexual existe, ou ele não existe (ou não é relevante), a ponto de a nossa orientação sexual poder ser redefinida como por “gênero”; ou temos direito a nos interessar exclusivamente por homens ou mulheres ou somos obrigados agora a dizer que teríamos relações sexuais, também, com mulheres que se declaram homens e homens que se declaram mulheres ou travestis. Ou nossa intimidade física envolve corpos ou apenas invisíveis “identidades de gênero”.
Ao longo dos anos, temos verificado inúmeras tentativas de pressão (em alguns casos, coação!) para redefinirmos a nossa rópria sexualidade. A mais recente vítima, quem diria, foi o cantor Pablo Vittar; o transativismo decretou que Pablo, que é gay assumido, não pode gostar exclusivamente de homens (“r*l*”):
Links aqui,
O cantor acabou excluindo o tuíte. O fato lembra o ocorrido com a dupla sertaneja Pedro Motta e Henrique; o personagem principal da música “Lili”, aparentemente, não tem o direito de se relacionar exclusivamente com mulheres. Transativistas assediaram os músicos até eles mudarem a letra da canção.
Contudo, há anos, a pressão maior para uma suposta “desconstrução” foi e é sobre lésbicas. Foi cunhado até mesmo um termo específico para a recusa delas: “cotton ceiling” ou “teto de algodão” – o algodão é uma metáfora para a calcinha delas. Isso teve consequências inclusive na política institucionali brasileira: houve, no ano de 2018, um grande desconforto em relação a “Luiza Coppieters”, do PSOL-SP, que se declara “mulher trans lésbica”. Isso por causa, principalmente, de sua fala durante a XVI Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo; o vídeo foi postado na própria página da Caminhada. As críticas às ações de Luiza remontam pelo menos a 2016.
O silenciamento de lésbicas é tão grande que nem mesmo estatísticas confiáveis elas podem ter mais: um censo lançado recentemente previa a inscrição de pessoas de ambos os sexos. O fato foi denunciado por Gisela Carvalho, do Espaço Resiliência, no Rio de Janeiro, e ela convida lésbicas a questionarem essa metodologia junto à organização.
Somos gratas ao grupo Lésbicas Autônomas, que escreveu e enviou o texto abaixo. Esperamos que mais pessoas atentem para a gravidade do tema; você não deve sexo a ninguém! O direito à orientação sexual precisa ser protegido em lei, baseado obviamente no sexo biológico (independente do que consta em documentos mudados por autodeclaração). E é nesta lei que devemos nos basear.
“Translésbicas” e estupro corretivo
Em agosto, comemora-se o mês da visibilidade lésbica: trinta e um dias notáveis da luta diária pela existência, em que a lesbofobia é tanto um tema abordado por nós quanto uma das formas de violência que sofremos sistematicamente, partindo, inclusive, de quem julga integrar nossa comunidade. Nesse último mês de agosto, entre as mulheres que trataram abertamente sobre a existência lésbica, surgiram também aquelas que reivindicaram uma voz atuante num movimento que, intrinsecamente, denota a recusa ao falo: as “translésbicas” – transmulheres que se autointitulam lésbicas, uma dialética material e semântica que acarreta em mais uma faceta da lesbofobia: a violência simbólica. Nesse contexto, torna-se urgente a necessidade de retomar conceitos básicos a fim da manutenção do direito lésbico de expressar de maneira íntegra a sexualidade.
Preliminarmente, é de suma importância ressaltar a definição concreta de homossexualidade enquanto fio condutor da crítica à presença de transmulheres no movimento e em espaços lésbicos. Assim, vale constar que a sexualidade humana está relacionada tanto a fins reprodutivos quanto ao desejo e à atração sexual; está atrelada ao corpo físico e, portanto, é inerente ao sexo biológico. A homossexualidade, logo, é a expressão do desejo sexual somente por indivíduos do mesmo sexo. Paralelamente, a lesbianidade é um termo surgido pela necessidade de abordar e delinear as particularidades materiais e sociais de relações homossexuais entre mulheres – fêmeas humanas –, ou seja, relacionamentos lésbicos. Além de homossexuais, essas sofrem também o peso da dominação patriarcal. Dessa forma, é impossível a coexistência de lesbianidade e indivíduos do sexo masculino, independente do gênero que se identificam ou a imagem social que buscam exercer. A classificação da sexualidade de transmulheres parte do único e primordial elemento concreto que as caracteriza e as une enquanto mulheres transgêneros: o sexo masculino. É somente a partir da aceitação da materialidade que se torna possível compreender a real situação de suas sexualidades; indivíduos do sexo masculino cuja atração sexual é direcionada ao sexo oposto, o feminino, são heterossexuais, assim como o contrário é igualmente válido. Lésbicas são homossexuais do sexo feminino, e, portanto, em nenhum contexto se associam ao falo, tanto na identidade quanto na sexualidade.
A sociedade atual é histórica e estruturalmente patriarcal e heteronormativa. A heterossexualidade não se limita à esfera da individualidade, infiltrando-se, principalmente, em todas as facetas macrossociais. A sujeição de mulheres perante homens constitui, sobretudo, uma ferramenta política de dominação de corpos a fim de dar continuidade ao sistema capitalista. A produção de riquezas está enraizadamente ligada ao controle reprodutivo e ao trabalho doméstico, pilares do aumento da mão de obra disponível através da maternidade e manutenção das necessidades básicas da classe trabalhadora, respectivamente. Nesse contexto, a lesbianidade é o único ato político que estremece as bases da heterossexualidade enquanto regime compulsório de opressão feminina, pois lésbicas constituem a única classe que rejeita completamente o sexo masculino. O amor entre mulheres é potencialmente perigoso pois ameaça a ordem vigente. Assim, dentre as inúmeras formas de controlar a sexualidade da mulher e, portanto, sua esfera público-privada, consta a violação de seus corpos. O estupro corretivo é um mecanismo de coerção que deve ser reinterpretado: diante do fenômeno de inclusão de machos em relacionamentos lésbicos, pela difusão da teoria queer, o estupro deixou de estar somente ligado ao processo violento da tentativa de desumanização da mulher lésbica; além disto, está relacionado também à esfera sexual. Ao tirar o estupro do domínio “do sexual”, colocando-o no domínio “do violento”, possibilita que alguém seja contra o estupro sem colocar quaisquer questões sobre o alcance no qual a instituição da heterossexualidade inclui a força como parte normal das “preliminares” (MACKINNON, 1979). Dessa forma, ao tratar o estupro corretivo somente dentro do âmbito brutal, anula-se a problemática cada vez mais crescente nestes últimos anos, que envolve a coação de mulheres lésbicas para que se relacionem sexualmente com transmulheres. Nem todo estupro deixa marcas físicas, podendo acontecer sem a vítima sequer saber que foi abusada. As “preliminares”, nesse caso, foram usadas como exemplo no relato de um estuprador, que confessou, ironicamente, impor tanta força física quanto se é necessária durante as preliminares. Vale lembrar que a coação e ameaças são formas de violência simbólica, causando danos morais e psicológicos em quem a sofre, praticada através da aliciação e manipulação de inverdades, como o tratamento de sexualidade como manifestação da atração e desejo à identidade de gênero de outrem. O consentimento no sexo entre mulher lésbica e transmulher é inexistente, pois configura uma forma de violentar a integridade da primeira, uma vez que, na prática, essa relação se caracteriza heterossexual. Logo, o estupro pode mascarar-se na falsa ideia de sexo consensual, o que não o desclassifica, de forma, como uma forma de violência – pelo contrário, intensifica-a ainda mais.
Esse fenômeno coercivo apresenta-se sob duas faces, explícitas e implícitas, ambas comuns e frequentes em redes sociais. Quando mulheres lésbicas falam abertamente sobre sua única e exclusiva atração sexual, pelo sexo feminino, podem ser atacadas de duas formas. Nessas postagens, não é difícil encontrar aqueles que tentam reinventar a definição de lesbianidade com “ninguém está empurrando pênis para mulheres lésbicas, mas…”, de onde surgem os complementos: “aquelas que se relacionam com mulheres trans não são menos lésbicas por isso”, “lésbicas não gostam de homens, e mulheres trans são mulheres”, “não é normal não se relacionar com alguém por ser trans”, “nem toda mulher trans usa o pênis”, dentre outros derivados. A tentativa de normalizar o sexo hétero na esfera da lesbianidade traveste-se como progressismo e inclusão; ao propor que lésbicas não precisam se relacionar com machos, mas essa escolha acarreta em “transfobia velada”, pavimenta-se o caminho da coação. O argumento de “desgenitalizar” o sexo e as pessoas mostra-se eficiente numa sociedade onde mulheres lésbicas já estão nas correntes da culpa, perguntando-se se são transfóbicas por não quererem sexo com transmulheres por terem pênis, em tom quase suplicante por perdão. Associar seus interesses individuais e indissociáveis de sua realidade material (lesbianidade e o sexo feminino) a uma suposta forma de violência e opressão constrói no imaginário social a ideia de que mulheres lésbicas podem sentir atração pelo sexo oposto. Aquelas que não o sentem e ainda não têm consciência de que é pontualmente essa não-atração que as fazem lésbicas, o que acontece sobretudo entre adolescentes que estão descobrindo suas sexualidades e estão expostas constantemente aos discursos lesbofóbicos do transativismo, sentem-se culpadas e coagidas a se relacionar com o sexo oposto. Com isso, podem surgir traumas desses atos sexuais, ligados ao estupro corretivo, levando a casos de dissociação de imagem, negação da própria identidade e síndrome do estresse pós-traumático. Esses resultados estão ligados à realidade da mulher lésbica na sociedade patriarcal e a imposição da relação com o falo (na prática, heterossexualidade compulsória), mas, diante do silenciamento lésbico pelo transativismo, debater sobre esses temas é uma “nova forma” de transfobia, o que está relacionado ao apagamento do sexo, ou seja, ao discurso “desgenitalizador”. Vale relembrar que homossexualidade é um termo que vem do grego “ὁμός” (homos – igual) e do latim “sexus” (sexo), que significa a qualidade, a característica de se sentir atraída (o) por pessoas do mesmo sexo. É uma orientação sexual. É para onde nosso desejo e afeto se orientam. E o nome já diz: SEXUAL. O sexo importa. Pessoas amam pessoas, e se relacionam com os seus corpos, seguindo as suas próprias orientações sexuais. Não fazemos sexo com identidades e estereótipos. Lésbicas amam e fazem sexo com mulheres. Esse é o nosso desejo. Essa é a nossa afetividade. E eles são imutáveis. Invioláveis, por mais que nos agridam. Nosso amor é por mulheres, não por homens, e não há ataque masculino, mesmo que travestido de feminilidade, que nos fará abrir mão dos nossos espaços, da nossa linguagem, do nosso direito de destinar afeto e desejo para quem a nossa orientação sexual nos conduz: mulheres.
A outra faceta da coação é explícita, exposta em perseguições àquelas que negam o falo e, politicamente, priorizam mulheres em todos os âmbitos de suas vidas, sobretudo mulheres lésbicas. Discursos que apresentam-se resolutamente nas mais danosas formas de lesbofobia e lesboódio são comuns. Xingam-nos de transfóbicas, desejam-nos a morte, ameaçam de nos bater se nos virem na rua, prometem enfiar seus “pênis lésbicos e femininos” em nós., nos fetichizam ao compartilhar fotos de mulheres hipersexualizadas. Desumanizam-nos. Não existe pênis feminino, tampouco lésbico, e tal ideia é absurda e violenta! Chamar de transfobia o ato de sentir atração apenas por pessoas do mesmo sexo e escolhermos assim nos relacionarmos, ou dizer que as nossas preferências de relacionamento por mulheres (fêmeas adultas humanas) são um ato de ódio, não configuram só uma grande e perversa chantagem emocional, mas também uma misoginia e lesbofobia profundas, travestidas de um discurso de exclusão e sofrimento. Invertem-se as posições do opressor e oprimido, tal como se faz em um relacionamento abusivo com um narcisista, onde as pessoas compram o discurso de bondade e vitimização de quem violenta, e a violada sai como louca, opressora, perversa. Cientes desta dinâmica, nós, mulheres lésbicas, estamos aqui para fazer esta denúncia. E faremos. E não nos calaremos. Não nos dobraremos. Ainda, isso não faz de nós transfóbicas. Podemos, inclusive, porventura relacionarmo-nos com pessoas trans. Porém, as únicas pessoas trans com quem nos relacionamos são aquelas que, independente dos gêneros com os quais se “identifiquem”, são do sexo feminino. Temos o direito de nos reunirmos entre nós. Temos o direito de nos amarmos. Temos o direito de nos relacionarmos com pessoas do mesmo sexo, pois isso se chama orientação sexual. Temos o direito de não aceitarmos machos humanos adultos. E não aceitaremos. Está havendo uma antítese da liberdade, onde a verdadeira diversidade das orientações sexuais está sendo calada em nome da supremacia masculina dos heterossexuais de vestido, ou, como o progressismo chama hoje, “as translésbicas”.
A ideia “desgenitalizar” o sexo é absurda, tanto no aspecto biológico quanto social. A realidade material é inata, bem como o fato de que mulheres lésbicas não devem e não vão sujeitar
-se a machos humanos adultos. Sexo não é passível de transformações, independente do quão cirúrgica e hormonalmente esses corpos foram modificados. Apagar o papel do sexo é invalidar a única característica concreta que nos une enquanto classe, sem estereótipos, redundâncias ou circularidades. Nenhum debate é eficiente se não for pautado na realidade material e esse fato não se difere na pauta da sexualidade. A distorção de conceitos em prol de uma falsa (e imposta) inclusão é contraproducente; por exemplo, falar sobre a saúde da mulher no sexo lésbico implica em políticas, mecanismos e métodos contra ISTs que considerem o contato entre vulvas. A saúde sexual de uma fêmea e um macho, independente de suas identidades sexuais, são temas recorrentemente tratados por serem, na prática, sexo heterossexual. Tratar este como lésbico anula o debate de pautas concretas, uma vez que impede a análise materialista. Consequentemente, a exploração da sexualidade feminina é dificultada pela falsa concepção de que devemos nos relacionar com mulheres transgêneros, banalizando temas como estupro corretivo e heterossexualidade compulsória; a reivindicação de direitos se torna turva, pois passaria a se guiar por uma abstração. Transmulheres, machos biológicos, que se atraem por mulheres existem, e respeitamos isso. No entanto, esses indivíduos, por definição, são heterossexuais, e não homossexuais. Existem mulheres que se atraem por essas pessoas, mas não podem ser chamadas de lésbicas; são heterossexuais ou bissexuais. Reivindicar respeito pela nossa sexualidade não é um discurso de ódio, é um direito. Vale notar que, nessa dinâmica de editar a definição de homossexualidade, por muito tempo fomos as únicas a serem tratadas como opressoras, excludentes ou intolerantes. Recentemente, discursos de ódio direcionados a homens gays por “falocentralizar”, por expressarem que não se sentem atraídos por fêmeas humanas estão pouco a pouco tomando voz; eles passaram a ser coagidos a se relacionarem com transhomens, embora em menor grau que no nosso caso. Ainda mais discrepante é o caso dos homens heterossexuais. Eles não são perseguidos por não chuparem “pênis feminino”, embora esses estejam em número muito maior em comparação à quantidade de mulheres lésbicas. Esse ataque é direcionado e um reforço prático do estupro corretivo, novamente a fim de nos sujeitar à classe masculina de forma indireta. É evidente que a lesbofobia é a mais invasiva forma de opressão porque a lesbianidade é lida como “antinatural”, a partir do momento em que não dispõe corpos femininos à reprodução, não inclui pênis, elemento cuja ausência causa estranhamento e curiosidade, e, principalmente, por estar exclusivamente ligada ao prazer feminino.
Assim, reivindicar o direito da existência lésbica é urgente. Não vamos deixar que roubem nossa identidade e violentem nossos corpos, pois temos o direito de existir e nos unir com as nossas iguais, mulheres lésbicas. A ideia de “translésbicas”, bem como a inclusão de machos dentro de um continuum lésbico, é extremamente violenta em todas as facetas. O transativismo nos invade, nos invisibiliza e, por fim, nos mata. É necessário proteger mulheres e adolescentes lésbicas de todos e quaisquer predadores sexuais, principalmente dos que prometem andar conosco sob um utópico progressismo, para que possamos ter uma vida íntegra e livre. A luta pela existência lésbica é diária e não começou ontem, assim como não vai acabar amanhã. Sigamos resistindo e existindo em todos os espaços. Nossa voz será ouvida por todos, porque a revolução será sapatão ou não será!