A Resolução nº 1/2018, do Conselho Federal de Psicologia, enquanto violação do direito à saúde dos pacientes
1) As origens da Resolução nº 1/2018, do Conselho Federal de Psicologia. As “terapias de conversão” (“conversion therapies“) e o “modelo afirmativo de gênero”
Nos anos 50, um pequeno número de profissionais de saúde atuantes nos Estados Unidos como John Money, Robert Stoller e Harry Benjamin ajudaram a firmar a ideia, até hoje não comprovada, de que todos nós teríamos uma invisível “identidade de gênero”. Esta ideia foi colocada como justificativa para comercializar no país serviços de modificação corporal em seres humanos fisicamente saudáveis iniciados na Europa; supostamente, estes teriam o que era à época chamado de transtorno de “identidade de gênero” ou “transexualismo” (1). Os que legitimam este entendimento e esta prática costumam expressar-se basicamente, de duas formas concomitantes:
a) Através de termos vagos, subjetivos e ou de cunho esotérico e ou pseudocientífico, como “alma feminina ou masculina” e “essência”. Um exemplo é a manchete do jornal O Globo no Dia da Mulher do ano de 2012: “Em dia especial, transexuais contam que ser mulher é ‘questão de alma’” (2).
b) Através de estereótipos, como brinquedos, brincadeiras, roupas e comportamentos. Exemplo disso é a mesma matéria do Globo: “Depois veio a blusa, o cabelo, a calça apertada, o furo na orelha. (…) eu chegava no colégio, colocava maquiagem e me mandavam tirar”. Estereótipos compõem inclusive os critérios do DSM adotados pela Sociedade Brasileira de Pediatria para o diagnóstico de “disforia de gênero” em crianças e adolescentes desde 2017 (3) (critérios esses que também citam brinquedos e vestuário) e a definição dada por Andrea Chu, transativista, em seu livro “Females” (palavra que pode significar tanto “mulheres” como “fêmeas”): ser mulher seria “qualquer operação psíquica a qual o eu é sacrificado para acomodar os desejos do outro” (4).
Ao longo da segunda metade do século XX e da primeira década do século XXI, assistimos à transformação do que era uma hipótese a legitimar um tratamento em um “direito” reconhecido em leis e normas em geral a ser coercitivamente exercido sobre o resto da população, empresas e instituições variadas. Esse processo se daria, entre outras técnicas, através da associação a um outro direito, este sim bem real, que já estava relativamente aceito em países ocidentais nos anos 90: o direito à orientação sexual. Criou-se uma falsa equivalência entre o “ser trans” (“transexual, transgênero, travesti”) ao ser lésbica, gay ou bissexual; entre o “T” e o “LGB”. Esta apropriação se daria através do aproveitamento de organizações e grupos existentes de gays, lésbicas e bissexuais ou da criação de organizações já sob a sigla corporativa “LGBT”, que depois ganharia outras letras e até mesmo um enigmático sinal de “+”. Um marco desse processo foram os Princípios de Yogakarta, um documento firmado por particulares “sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero” que é propagandeado como um “tratado internacional” até mesmo por operadores do Direito. A linguagem cunhada por “LGBs” também foi mimetizada; assim, à homossexualidade se associou a “transexualidade”, ao termo homofobia juntou-se o neologismo “transfobia” etc. No século XXI, com a entronização da Teoria Queer em universidades e em meio à internet, à “modernidade líquida” e à “pós-verdade”, proliferariam rótulos como “não-binário”, “agênero”, “bigênero” e “gênero fluido”; ironicamente, eles foram adotados por uma geração que garante “não gostar de rótulos”.
Essa associação entre “identidade de gênero” e orientação sexual através da sigla “LGBT” e suas variantes foi aceita, acriticamente, por políticos, mídias, acadêmicos, militantes e profissionais de saúde mental. Não se refletiu sobre as consequências, muito diferentes, entre indivíduos que apenas sentem afeto e atração por outros do mesmo sexo e indivíduos que exigem da sociedade a redefinição do que são homens e mulheres, o que só pode ser realizado com a retirada de direitos da população; entre outros, a liberdade de expressão, que inclui dizer o que são homens e mulheres, o direito a espaços separados por sexo e o próprio direito à orientação sexual (pois esta pressupõe o reconhecimento do sexo biológico). Para muitos adultos gays, lésbicas e bissexuais, o “casamento forçado” que suas lideranças estabeleceram com o “T” e o “Q” (“queer”) prejudicam os próprios LGB, sobretudo quando jovens, pois estes podem assumir uma “identidade trans” como forma de fugir da homofobia e do bullying ou sob o jugo da exploração sexual; por esse motivo alianças “LGB”, sem as demais letras do alfabeto, foram reconstruídas. Nossa campanha reitera, portanto, a importância de vermos no acrônimo “LGBT” e suas variações não uma agenda de direitos, mas de retirada de direitos (6).
No campo da saúde, física e mental, a ideia de “identidade de gênero” seria desvinculada do termo transtorno e apresentada como um fato inquestionável – um dogma. Nos países ocidentais, mas cada vez mais em países orientais, seria imposto o lucrativo modelo que se autodenomina como “afirmativo de gênero” tanto nos sistemas de saúde públicos quanto na rede privada, a abarcar até mesmo crianças e adolescentes. De maneira resumida, os profissionais que o impuseram consideram a autodeclarada “identidade de gênero” soberana, incentivam ou aceitam a “transição social” (inclusive de crianças) como inofensiva, proferem diagnósticos em um curto espaço de tempo e ou em pacientes ainda em fase de crescimento, legitimam intervenções físicas precoces, usam linguagem confusa, fantasiosa ou contraditória e têm técnicas de divulgação e convencimento pouco éticas, como ameaças veladas de que pacientes irão se suicidar caso não recebam rapidamente hormônios e cirurgias e minimização ou ocultação de efeitos colaterais e da possibilidade de arrependimento e ou destransição.
Uma das maneiras como o “modelo afirmativo de gênero” se estabeleceu foi dificultando ou impossibilitando o acesso da população à terapia comum e investigatória. Isso seria feito utilizando, mais uma vez, uma conquista da luta pelo direito à orientação sexual: no dia 17 de maio de 1992, a homossexualidade foi retirada da Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). O que poucos poderiam imaginar é que um pequeno mas influente grupo utilizaria esse feito para aprovar normas e leis para o “banimento de terapias de conversão” (“ban conversion therapy”) que incluiriam não só tentativas de mudar a orientação sexual de alguém, mas também qualquer tentativa de refletir junto aos pacientes (inclusive aos próprios LGBs) sobre seus sentimentos de não-pertença a seus corpos. A indústria do “gênero” (agora se pode falar de uma indústria) se apropriaria também de conceitos bem-vistos por boa parte da área de saúde como “despatologização” e “desmedicalização”: começou-se a falar em “despatologização da transexualidade” assim como se falava em despatologização da homossexualidade, em “despatologização das ´identidades trans´” assim como se falava em despatologização de gays, lésbicas e bissexuais e alguns extremistas inclusive começaram a rejeitar que as condições de saúde conhecidas como “transtorno de ´identidade de gênero´” “transexualismo” “disforia de gênero” e “incongruência de gênero” fossem consideradas transtornos mentais, alegando que a homossexualidade já não o era mais. É curiosa a postura dos que utilizam a Organização Mundial de Saúde como parâmetro, pois ao mesmo tempo em que afirmam que a OMS retirou a “incongruência” do capítulo de transtornos mentais, insistem em mencionar a possibilidade de suicídio caso o Poder Público, os planos de saúde ou seus familiares não financiem as modificações corporais.
Essa falsa equivalência não resiste a uma reflexão mais profunda. A orientação sexual não é uma invenção como a “identidade de gênero”; provavelmente a quase totalidade dos adultos a experimenta! Da mesma forma, sentir-se atraído por alguém não é uma patologia, mas a confusão e ou sofrimento psíquico sobre o próprio sexo e ou a rejeição extrema ao próprio corpo a ponto de exigir que um médico decepe membros saudáveis podem, sim, ser consideradas questões de saúde mental. Finalmente, os “LGB” não querem ser tratados como se tivessem uma patologia, enquanto o “T”, ainda que fale em “despatologização”, exige na prática ser tratado como um paciente que padece de uma doença grave o suficiente para demandar consultas por toda a vida com endocrinologistas, fornecimento de hormônios sintéticos e cirurgias invasivas. A expressão “pessoa trans” abrange tanto pessoas que simplesmente se autodeclararam “trans” e que chamaríamos há poucos anos de crossdressers quanto as que exigem modificações corporais para emular pessoas do sexo oposto ou de nenhum sexo, os nullum (7); esse processo é obviamente medicalizado: há diagnósticos, consultas, exames, fornecimento de hormônios e cirurgias, novas cirurgias para corrigir as anteriores. Grupos afiliados à sigla “LGBT” fazem lobby para desviar recursos públicos para a construção de ambulatórios de “identidade de gênero” e para a compra de seus insumos; há também ações indiretas para criar a demanda por esses serviços como a exigência para que escolas ensinem crianças e adolescentes sobre suas supostas “identidades de gênero”, para que empresas privadas, órgãos públicos e professores recebam “capacitações” sobre “gênero e diversidade” etc.
Assim, nesse processo de mimetização, a sociedade em geral e psicólogos, psicanalistas e psiquiatras em particular foram convencidos de que, assim como tentativas do profissional de mudar a orientação sexual dos pacientes configurariam “terapia de conversão” (“cura gay”), questionar algo em torno da ideia de “identidade de gênero” ou alguma parte do discurso “trans” também o seria. Desde então, provavelmente em todos os países na qual atua a indústria da “identidade de gênero” como o Brasil, Canadá e Estados Unidos, foram impostas punições para profissionais de saúde em lei ou administrativamente, denominadas, de maneira geral, de “conversion therapy ban” ou “banimentos de terapias de conversão” – abarcando tanto tentativas de reverter uma orientação sexual quanto uma suposta “identidade de gênero”. Neste ano de 2022, presenciamos tanto a aprovação do banimento no Canadá (8) quanto a discussão que está acontecendo no momento no Reino Unido, onde o governo lançou uma consulta pública (9). No Brasil, conforme comentaremos adiante, vige desde 2018 a Resolução nº 1/2018, do Conselho Federal de Psicologia.
Dessa forma, no momento atual, profissionais adeptos da terapia investigativa tradicional, céticos sobre os resultados a longo prazo das intervenções físicas, críticos à “transição” infanto-juvenil ou que simplesmente expressassem qualquer reserva sobre esta indústria correm o risco de serem acusados de “terapia de conversão”. Em geral, pessoas que questionam o discurso transgenerista também enfrentam, a depender do país, risco de punições cíveis e criminais por “transfobia”, bem como perseguições de ativistas alinhados à sigla “LGBT” ou à letra “T”: ameaças, difamação, linchamentos virtuais e até mesmo agressão física (10). A imposição destas punições são um dos braços do chamado “modelo afirmativo de gênero”, que reputamos como danoso aos pacientes – sobretudo menores de idade. Sugerimos a leitura do nosso artigo “Novas diretrizes médicas e terapêuticas para questões de gênero e o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente”, publicado pela Escola Superior do Ministério Público da União (11).
Como esse processo aconteceu no Brasil, culminando na Resolução nº 1/2018, do Conselho Federal de Psicologia?
O CFP baniu tentativas de “conversão” da orientação sexual dos pacientes em 22 de março de 1999, com a publicação da Resolução nº 1/1999 (12), a qual, verbis, “Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual” (grifos nossos). Mesmo com a diferença abissal, repetimos, entre se reconhecer o direito à orientação sexual e se redefinir o que são homens e mulheres, parte do CFP aderiu à tática de mimetizar as duas questões; por exemplo, numa matéria publicada em seu site no ano de 2015 (13) cujo título era “17 de maio: o mundo comemora o dia de luta contra a homofobia”, o subtítulo foi: ”Em celebração e apoio ao dia de luta, o CFP realizará debate online na próxima sexta (22) e lançará site sobre a despatologização das identidades trans e travestis”. O texto da matéria expressamente citou a sigla corporativa “LGBT” e fez referência a ações da própria autarquia no ano de 2014 de “despatologizar identidades trans e travestis” (14). A tentativa de mimetização seria vencedora e em 2018, já vigente no país a “transição” infanto-juvenil baseada no Parecer nº 8/2013, do Conselho Federal de Medicina, o Conselho Federal de Psicologia publicaria a Resolução nº 1, de 29 de janeiro de 2018, que “Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis”.
Vamos então aos termos da Resolução do CFP, que são similares a outras normas do tipo: o documento também menciona a sigla corporativa “LGBT” e expressões sem comprovação científica como “identidade de gênero”, “cisnormatividade” e “transfobia”. Nem é informado como homens e mulheres poderiam se transformar em alguém do sexo oposto. Por mais que seja difícil dizer a verdade, sabemos que as citadas “pessoas transexuais e travestis” são necessariamente homens e mulheres como todos os demais seres humanos do planeta e isso não muda com autodeclaração e nem com serviços médicos. A norma não teve o cuidado de fazer exceções nem mesmo para o atendimento de crianças e adolescentes. Fato é que, após iniciar com algumas “considerações”, a Resolução informa seus 9 artigos:
“Art. 1º – As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, atuarão segundo os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 2º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 3º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis.
Art. 4º – As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminações em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 5º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício de sua prática profissional, não colaborarão com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias em relação às transexualidades e travestilidades.
Art. 6º – As psicólogas e os psicólogos, no âmbito de sua atuação profissional, não
participarão de pronunciamentos, inclusive nos meios de comunicação e internet
que legitimem ou reforcem o preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis”.
Esta norma não teve, repita-se, o cuidado de propor um tratamento diferenciado para crianças e adolescentes. Nem para vítimas de abuso sexual, pessoas com questões de saúde mental ou outro grupo cuja compreensão e entendimento possam estar comprometidos o suficiente para, mais que autorizar, exigir do psicoterapeuta mais indagações. Antes de partir para as considerações da campanha No Corpo Certo, sugiro a leitura da Carta escrita por psicólogos dirigida ao CFP e que publicamos no site em 2020 (15). Trecho:
“Psicólogos devem agora ´legitimar autodeterminações, autoidentificações e discursos´? Isso se torna potencialmente nocivo do ponto de vista da saúde mental dos sujeitos em análise e dos sujeitos sociais que não estão em terapia mas levam seus filhos e filhas a um consultório psicológico por estes, aparentemente, vivenciarem a disforia de gênero como sintoma, apresentando sofrimento psíquico. O Psicólogo não é aquele que ´legitima discursos´. Ele justamente os questiona, convida aqueles que sentam à sua frente a refletir, analisar causas, intenções, necessidades afetivas que motivam e direcionam comportamentos. Psicólogos são facilitadores do autoconhecimento, da autonomia existencial, da liberdade do ser. E essa prática é mais delicada ainda no que concerne pessoas que ainda estão em uma fase de formação, desenvolvimento e estruturação da personalidade e do ego”.
2. Consequências da Resolução nº 1/2018 do CFP
2.1 Violação do direito à saúde dos pacientes
Como se dá um processo terapêutico quando o (a) profissional sabe que se fizer determinados questionamentos, mesmo da forma mais gentil possível, ou se simplesmente proferir fatos incontroversos acerca da diferença sexual, ou se, ainda, se manifestar publicamente sobre a “transição” infanto-juvenil, isso pode lhe custar a sua carreira profissional, seu ganha-pão, sua honra e dignidade e até mesmo (a depender da interpretação do que seria a “criminalização da transfobia” pelo Supremo Tribunal Federal), a prisão? Esse processo terapêutico ou não acontecerá ou será incompleto. O profissional, por medo, pode recusar-se a atender em seu consultório estes pacientes com a desculpa que “não é da área”, o que é ruim para o paciente já que “essa área” é dominada pelos profissionais “afirmativos”. No caso de servidores públicos, eles podem, também por medo, se recusar a trabalhar em ambulatórios de “identidade de gênero”, o que novamente deixa os pacientes entregues aos “afirmativos”. Ainda que o atendimento aconteça, as questões subjacentes do paciente que podem levar à rejeição do sexo biológico poderão não ser adereçadas ou serem adereçadas superficialmente. Finalmente, no que diz respeito ao cerceamento da liberdade de expressão do artigo 6º, a sociedade perde ainda mais que o profissional, pois tenderá a acreditar que é unânime entre psicólogos que seja ético, por exemplo, congelar a puberdade de um menino ou menina saudável de apenas 9 anos. Pedimos atenção aos operadores do Direito para o artigo “A ´disforia de gênero´ infantojuvenil e o direito fundamental da proteção integral da criança e do adolescente – um debate necessário”, da Procuradora da República Tatiana Almeida de Andrade Dornelles (16).
Ainda que seja reconhecido que, embora não existam “identidades de gênero”, a disforia é real e demanda uma resposta da área da saúde, duvidamos que intervenções corporais sejam éticas. A uma, porque o dever do profissional de saúde não é simplesmente obedecer às exigências dos pacientes; não estamos, ou ao menos não deveríamos estar, num balcão em que se paga e se recebe. A duas, porque a afirmação da autopercepção do paciente (“identidade de gênero) ultrapassa a pessoa dele, impactando toda a sociedade – por exemplo, o direito de meninas e mulheres a espaços separados por sexo. O Código de Ética do Psicólogo, em seus princípios fundamentais, exige: “III – O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural” (17). Conforme já foi dito certa vez por uma psicóloga anônima, “se um paciente me diz que irá se suicidar se a esposa não voltar para ele, seria antiético eu tentar convencer a esposa a atçuar de acordo com a vontade dele. Devo, isso sim, ajudar o paciente a lidar com a realidade da situação”.
2.2. Violação da autonomia do terapeuta
A psicologia, que historicamente questionou o discurso médico é, hoje, uma psicologia subalterna. É submissa à medicina, no entendimento que ela mesma criou sobre o que estes indivíduos são e de que forma deveriam ser cuidados – por uma extraordinária coincidência, através de modificações corporais extremamente lucrativas. É submissa aos dogmas acadêmicos da Teoria Queer, regurgitados diariamente por professores e alunos de universidades que não mais se permitem o contraditório. É submissa às demandas dos pacientes, das organizações do acrônimo “LGBT” e dos seus próprios representantes no Conselho, os quais recentemente reconheceram a existência de um terceiro tipo de ser humano jamais visto em milhares de anos da evolução e que não seria nem homem e nem mulher: o “não-binárie” (18) (19) .
Reafirmamos que, embora não exista comprovação de que seres humanos tenham “identidades de gênero”, sabemos que a disforia de “gênero” (que deveria ser chamada de disforia de sexo) é real e dolorosa. Mas terapeutas devem ter o direito de expressar, publicamente ou na privacidade do consultório (e, neste caso, da maneira mais gentil possível) seu ceticismo acerca dos benefícios da “afirmação de gênero”. Não cabe a ele dizer o que o paciente deve fazer, mas ele tem o direito a questionar – o próprio paciente, familiares, alunos, professores, jornalistas, seguidores de suas redes sociais – sobretudo quando tantos desses pacientes, na atualidade, são menores de idade. É direito do psicólogo autonomia, a mesma que autoriza médicos a, ao menos até o momento, se recusarem a performar lipoaspiração e cirurgias plásticas para indivíduos com anorexia e retirada de membros saudáveis para os com transtorno de identidade corporal (“body identity disorder” ou “BID”).
2.3 Perda do status de ciência
É curioso que uma área que foi e é frequentemente acusada de não ser científica ou ser pouco científica esteja hoje comprometida com uma pseudociência. A psicologia, assim como a medicina, se coloca como baseadas no método científico e é por isso que é oferecida gratuitamente no SUS. Não existe comprovação científica de que seres humanos mudem de sexo, nem que tenham uma “identidade de gênero”, nem que sejam trans“, “não-binários”, “agêneros” e todos os rótulos inventados ao longo do século XX e sobretudo no século 21. Para a decepção do jovem “pansexual, gênero fluido, queer e poliamorista”, com internet e tempo de sobra, a espécie humana é bastante previsível e banal: homens e mulheres, macho e fêmea como qualquer outro mamífero – inclusive os que nascem com DSDs ou “intersexos” (20). A confusão, sofrimento ou crença irreal sobre si mesmo pode sim ser caracterizada, eventualmente, como uma questão de saúde mental (“disforia”), mas a partir do momento em que legitimamos que a mudança de sexo possa acontecer, com esse nome ou eufemismos (“mudança de gênero”), estamos diante não de ciência, mas de, repetimos, pseudociência. Talvez até possamos falar, agora, de uma área híbrida, que conjuga métodos tradicionais como escuta qualificada e imposições que lembram uma religião extremista: há um dogma (“identidade de gênero”) no qual todos devem acreditar sem evidência alguma e imposição de punições aos heréticos (“transfóbicos”).
Uma das diferenças entre ciência e crenças variadas (religiosas, filosóficas, políticas, ideológicas etc.), sabemos, é a possibilidade de questionarmos ad infinitum. Profissionais da Medicina, Enfermagem, Matemática, Física e também de ciências humanas como Direito, História e Serviço Social são obrigados a aceitar nossas perguntas, ainda que difíceis, e respondê-las com base no método científico; em evidências . Muito provavelmente, você não aceitaria um diagnóstico de câncer terminal se seus exames estão regulares e você mesma (o) se sente perfeitamente bem, nem se veria na obrigação de acreditar que certa uma guerra aconteceu no Brasil anos atrás sem que houvesse um só indício histórico da mesma.
2.4 – Estímulo à ganância
Uma visão realista da situação atual precisa partir do fato de que pessoas físicas e jurídicas buscam otimizar seus ganhos. Isso é verdade tanto para a indústria-farmacêutica quanto para clínicas privadas e profissionais liberais; pessoas que questionam seu sexo são um nicho de mercado. Ainda que alguns possam se sentir desconfortáveis com o fato, precisamos ser honestos: o psicólogo que expresse ao paciente ceticismo sobre suas crenças de “gênero”, pondere sobre os limites da medicina ou o que ele pode esperar da sociedade pode perder instantaneamente o cliente. Isso significa perder R$ 1.000 por mês, considerando um cliente que faça quatro sessões por mês e pague um preço similar ao da tabela do CFP (em média, R$ 266,57) (21). Da mesma forma, aquele que se anuncia como especialista em “pessoas trans”, “questões de gênero” e “saúde LGBTQIA+” pode multiplicar seus clientes conforme diga exatamente o que ele quer ouvir. Mesmo os que estão na rede pública podem manter em separado atividades privadas como consultórios, clínicas, consultorias para laboratórios, venda de palestras, livros, “formações” em “saúde LGBT” etc.; parte desses profissionais está, também, em organizações da sigla “LGBT” e em grupos de “apoio” a mães e pais de crianças e jovens identificados como “trans”.
3. Uma pergunta final: o Conselho Federal de Psicologia está acompanhando o que está acontecendo no mundo?
Enquanto no Brasil perfis se “mães de ´crianças trans´” ainda arrebanham milhares de seguidores, em outros países as muitas vítimas da “transição” infanto-juvenil originaram documentos que deveriam ser lidos por todos nós, sobretudo pelos profissionais de saúde e educação. Conforme já noticiamos em nosso site em textos anteriores, países como Reino Unido, Suécia e França já tiraram o foco das intervenções médicas para o atendimento psiquiátrico e psicológico aos garotos e garotas com disforia de “gênero”. No Reino Unido, o NICE – National Institute of Health and Care Excellence (22) afirmou que, considerando que as aplicações hormonais em menores de idade têm evidências de baixa qualidade, o atendimento psicológico poderia “reduzir preocupações éticas”; na Suécia, o NBHW, o Conselho Nacional de Saúde e Bem-Estar, expediu recomendações (23) reconhecendo que, ao contrário do que os pais são levados a acreditar, “Não há conclusões definitivas sobre o efeito e a segurança dos tratamentos”; na França, a Academia Nacional de Medicina, em suas diretrizes atuais (24), enfatiza a importância do atendimento terapêutico para os jovens e suas famílias e avisa aos pais que devem ficar vigilantes acerca do uso de redes sociais por seus filhos.
Profissionais desse nicho de mercado insistem que “a equipe multidisciplinar realiza uma avaliação cuidadosa”. Mas não é isso que dizem os próprios pacientes que eles atenderam e que, anos depois, lamentariam as profundas modificações corporais neles realizadas quando ainda eram muito jovens e ou lidavam com delicados problemas mentais:
“dentre os entrevistados no estudo sobre destransição conduzido pela Dra. Lisa Littman, a maioria (55.0%) sentiu que não recebeu uma avaliação adequada de um médico ou profissional de saúde mental antes de iniciar a transição e apenas 24.0% dos respondentes informou aos profissionais que eles destransicionaram” (25).
Dias atrás, o psiquiatra e psicanalista Dr. David Bell, cuja luta já foi mencionada em nosso site (26), viralizou ao fazer um alerta na BBC sobre a possibilidade de a lei contra a “terapia de conversão” passar no Reino Unido (lei essa, repetimos, que abarca tanto o orientação sexual quanto “identidade de gênero”). O vídeo de Bell foi repercutido pela escritora JK Rowling em seu Twitter (27) e o fato foi noticiado pela revista Newsweek (28). O psiquiatra observou: “Trinta e cinco por cento destas crianças estão no espectro autista. Um grande número desses menores são gays e lésbicas que estão sofrendo em relação à sua orientação sexual e precisam ser ajudados a se entenderem melhor”. Ou seja, a proibição de que se questione “identidade de gênero” fez com que rapazes gays e moças lésbicas sejam convertidos, respectivamente, em “mulheres trans heterossexuais” e “homens trans heterossexuais”. Talvez essa seja a mais sofisticada terapia de conversão já criada.
“A História vai julgar se o Dr David Bell era um transfóbico odioso ou estava tentando alertar as pessoas para um escândalo médico, mas ele está longe de ser o único profissional de saúde que levanta essas preocupações (e eu tenho as cartas e e-mails para provar isso)”, advertiu Rowling.
A História irá julgar, também, os que são coniventes com o que está acontecendo com estes pacientes, sobretudo os nossos meninos e meninas. Este texto está sendo enviado para o Conselho Federal de Medicina e para o Conselho Federal de Psicologia – mais um que enviamos. Em hipótese alguma estes dois Conselhos poderão dizer, no futuro, que não sabiam de nada.
(2) [ https://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/03/em-dia-especial-transexuais-contam-que-ser-mulher-e-questao-de-alma.html ]. Muito provavelmente, o veículo hoje não utilizaria a expressão “corpos de homens”, embora a mesma seja cientificamente correta.
(3) [ https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/19706c-GP_-_Disforia_de_Genero.pdf ]. A SBP não disponibilizou em seu site a edição revisada de 2020 para o público em geral [ https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-apresenta-revisao-de-guia-pratico-para-atendimento-de-pacientes-com-disforia-de-genero/ ].
(8) [ https://www.nytimes.com/2022/01/06/world/canada/canada-conversion-therapy-law.html ].
(9) [ https://www.transgendertrend.com/conversion-therapy-therapists-uk/ ].
(10) Uma das vítimas foi a sexagenária Maria MacLahan, que narra o ocorrido em seu canal [ https://www.youtube.com/watch?v=YG58r8bm4Pw&t=362s ]. Há outros casos no site Women Are Human [ https://www.womenarehuman.com/ ].
(12) [ https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf ].
(13) [ https://site.cfp.org.br/17-de-maio-o-mundo-comemora-o-dia-de-luta-contra-a-homofobia/ ]
(14) [ [ https://site.cfp.org.br/cfp-realiza-acoes-pela-despatologizacao-da-identidade-trans/ ].
(17) [ https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf ].
(18) [ https://crp04.org.br/nota-sobre-o-dia-da-visibilidade-trans-nao-binarie/ ]
(19) [ https://www.crpsp.org/noticia/view/2793/manifesto-sobre-o-uso-da-linguagem-neutra-do-crp-sp ]
(20) [ https://www.youtube.com/watch?v=Hzhe8Wny0GQ&t=309s ].
(21) [ https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/07/FENAPSI_TABELA_ATUALIZADA_Junho_2021.pdf ].
(22) [ https://www.bbc.com/news/health-56601386 ].
(23) [ https://www.government.se/government-agencies/national-board-of-health-and-welfare–socialstyrelsen/ ].
(24) [ https://segm.org/sites/default/files/22.2.25-Communique-PCRA-19-Medecine-et-transidentite-genre.pdf ]
(25) O estudo da dra. Littman é este [ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8604821/ ] .
(27) [ https://twitter.com/jk_rowling/status/1509947311304105986 ]
(28) [ https://www.newsweek.com/jk-rowling-backs-warning-against-immediately-affirming-gender-dysphoria-1694489 ]. Encontramos uma matéria com a tradução em português [ https://www.ommercato.com/pt/trad/j-k-rowling-backs-warning-against-immediately-affirming-gender-dysphoria_163239 ].