Amigos e amigas! Informamos a vocês a inauguração da nossa série “Destransição”. Nós já falamos, evidentemente, desse tópico, mas agora será mais fácil para vocês, que tanto nos pedem informações sobre isso, localizarem os textos com foco nesse fenômeno.

A estreia se faz com uma tradução enviada pelo nosso leitor “D.” de uma matéria publicada no prestigiado jornal The Economist no dia 6 de novembro de 2021. “Retrato da destransicionada enquanto jovem“, cujo título remete ao clássico romance “Retrato do artista enquanto jovem”, de James Joyce, conta a história da Carol, que tem um ótimo perfil no Twitter. E a imagem que escolhemos para ilustrar esta série é a da Keira Bell, provavelmente a detrans mais famosa do mundo, que luta pelo fim da hormonização infanto-juvenil no Reino Unido e cuja história já narramos aqui no site. Aliás, você pode ajudar a Keira colaborando com a vaquinha para pagar as despesas judiciais da ação que ela move contra o ambulatório de “identidade de gênero” que a atendeu. Assim como no Brasil, a hormonização infanto-juvenil lá é oferecida pelo próprio sistema público de saúde.

O relato de Carol é idêntico ao de inúmeras jovens brasileiras com quem já conversei, bem como os relatos que recebi de suas mães, pais, de familiares, profissionais de saúde, de educação, amigas, amigos e ex-namoradas destas jovens. Se você quiser enviar o seu próprio relato, terei prazer em publicá-lo, anônimo ou não, pois talvez demore anos até médicos brasileiros divulgarem estudos sobre destransição. E que sejam artigos honestos, sem conflitos de interesse e de qualidade, que tenham rastreado todos os pacientes que eles atenderam e não somente os que supostamente “estão felizes”. Conforme o novo estudo da dra. Lisa Littman sobre destransição indica, estudo esse que é citado na matéria do The Economist, muitos destransicionados jamais retornam aos mesmos profissionais que os diagnosticaram, hormonizaram e operararam para contar o que se sucedeu. Portanto, é errado dizer que “a destransição é algo extremamente raro”.

Um grande abraço. Ah! Para a sua conveniência, mudamos a data de envio dos nossos textos para as 7 horas da manhã.

Equipe No Corpo Certo

Retrato da destransicionada quando jovem

 

Carol foi uma mulher, um homem e é uma mulher novamente. Sua história contém
lições para a medicina trans

(Imagem do Economist)
6 de novembro de 2021
Washington, DC

 

Carol suspeitava faz tempo que sua vida cotidiana na zona rural da Califórnia seria mais fácil se ela fosse um homem. Ainda assim, ela ficou atônita ao ver como isso acabou sendo verdade. Como uma mulher “butch” (e “não muito sorridente”) ela era rotineiramente tratada com um ligeiro desprezo, ela diz. Depois de uma mastectomia dupla e alguns meses de testosterona – o que lhe deu pelos no rosto e uma voz mais grave – “pessoas, caixas, todo mundo repentinamente ficou incrivelmente amigável”.

Apesar disso, Carol logo se sentiu infeliz como um homem trans. No começo, a testosterona que ela começou a injetar aos 34 anos melhorou seu humor e níveis de energia. Mas, após dois anos, ela começou a sofrer com efeitos colaterais horríveis. Atrofia uterina e vaginal (que pode fazer a pele rachar e sangrar) foi “extremamente doloroso”. Seus níveis de colesterol aumentaram e ela teve palpitações. Ela também se tornou tão ansiosa que começou a ter ataques de pânico. Então ela começou a tomar antidepressivos, e eles funcionaram. “Foi um momento de iluminação”, ela diz. “Eu fiquei tipo, eu precisava de antidepressivos; eu não precisava da transição”. Ela percebeu que sua disforia de gênero, os sentimentos dolorosos de que ela estava no corpo errado, não a tornavam, na verdade, um homem.

Quase três anos atrás, após quatro ano como um homem trans, Carol se tornou uma “destransicionada”: alguém que tomou hormônios sexuais cruzados ou fez cirurgia, ou ambos, antes de perceber que isso foi um erro. Sua experiência ilustra os perigos do modelo “afirmativo de gênero” de tratamento que aceita o autodiagnóstico do paciente de que eles são trans, agora uma prática padrão no campo da medicina trans americana.

Ninguém sabe quantos destransicionados existem, mas uma evidência anedótica e aumento de adesões a grupos online sugerem que esse número está crescendo rapidamente. Uma pesquisa recentemente realizada com 100 destransicionados (69 dos quais eram do sexo feminino) por Lisa Littman, uma doutora e pesquisadora, revelou que a maioria sentia que não recebeu uma avaliação adequada antes do tratamento. Quase um quarto disse que a homofobia ou dificuldade em aceitar que era gay (1) os levaram à transição; 38% avaliam que a disforia de gênero foi causada por algum trauma, abuso ou condição associada à saúde mental.

Carol acredita que as raízes de sua disforia de gênero jazem em sua infância. Uma criação que foi fanaticamente religiosa e abusiva trouxe duas mensagens prejudiciais. Uma foi a importância de “papéis rígidos de gênero… as mulheres estavam lá para servir; elas eram menos do que os homens”. A fúria interminável de sua mãe por Carol não se dobrar a essa noção de feminilidade, que incluía vestir apenas vestidos (“Eu nem mesmo ‘andava como menina’, o que quer que seja isso” ) significou que ela cresceu acreditando que seu modo de ser uma pessoa do sexo feminino estava “todo errado”. A outra mensagem era que a homossexualidade era “uma abominação”.

O momento “meu Deus” de Carol veio, como ela divertidamente descreve, quando ela teve uma “grande queda” pela corretora de sua mãe, aos 16 anos. A constatação levou a um colapso (embora ela não chamasse assim na época). Primeiro ela “jejuou e rezou a Deus para que levasse isso embora”. Então ela começou a beber muito e fazer sexo casual com homens “na esperança de que algo clicasse”. Quando ela saiu do armário aos 20 anos, muitos de seus parentes a excluíram das reuniões familiares.

Foi quando estava na casa dos 20 e muitas lésbicas de seu círculo social (“quase sempre as butch”) começaram a se identificar como homens trans que ela começou a pensar “Deve ser isso! É isso que está errado comigo!” Mas foi dito a ela que ela deveria viver como homem por seis meses antes de ser aprovada para o tratamento e a ideia de usar o banheiro masculino era intolerável. A essa altura, ela tinha conhecido a mulher que seria sua esposa e encontrado alguma estabilidade.

(Imagens do The Economist)

Porém, ela ainda estava profundamente infeliz. “Eu só me sentia… errada”, ela diz. “Eu estava com nojo de mim mesma, e se uma boa resposta aparece e diz: isso vai resolver, adivinha o que você vai fazer?”. Aos 30 e poucos anos, ela não precisava mais se consultar com um terapeuta para obter a prescrição de testosterona (a Planned Parenthood usa o modelo de “consentimento informado” em 35 Estados, o que significa que um paciente trans não precisa da recomendação de um terapeuta). Mesmo assim Carol foi a um terapeuta, porque ela queria “fazer isso certo”. O terapeuta não explorou seus traumas de infância, mas a encorajou a tomar testosterona. Meses depois, Carol teve seus seios retirados.

Destransicionar foi a coisa mais difícil que ela fez, diz. Ela estava tão aterrorizada e envergonhada que levou um ano para parar com a testosterona. Para seu alívio, os níveis de colesterol voltaram ao normal dentro ude alguns meses. Ela ainda tem alguns pelos faciais e uma voz grave. Sua mastectomia “é como qualquer perda: se dissipa, mas nunca vai embora por completo”.

Agora, ela passa bastante tempo fazendo campanha para que as histórias de outras destransicionadas sejam ouvidas. Este não é um trabalho fácil. Destransicionados que falam abertamente são frequentemente difamados. Um médico de gênero criticou o termo “destransicionado”, dizendo, com extrema crueldade, “que isso não significa nada”. O estudo da dra. Littman descobriu que apenas 24% dos destransicionados disse aos seus médicos que a transição não funcionou. Isso pode ajudar a explicar porque alguns desdenham esse fenômeno.

Carol se preocupa com as meninas que estão tomando bloqueadores de puberdade para evitar se tornarem mulheres, algo que ela diz que teria aproveitado caso tivesse a oportunidade. E ela se preocupa com as lésbicas butch que estão sendo encorajadas a acreditar que elas, são na verdade, homens héteros. Agora, ela considera isso homofóbico. “Minha esposa me disse recentemente que, quando eu estava fazendo a transição, ela embarcou nessa por dois meses antes de perceber que isso era loucura. E ela estava certa. Foi dito a ela: sua esposa é na verdade um homem, então você é bissexual ou hétero. Isso era uma besteira”.

 

(Este artigo apareceu na edição impressa dos Estados Unidos sob o título “Retrado de uma destransicionada”).

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(1) É comum, sobretudo nos EUA, o uso dos termos “homofobia” e “gay” de maneira a englobar, respectivamente, lesbofobia e  lésbicas.

(2) A Plannet Parenthood é uma rede de clínicas de saúde nos EUA com preços populares (e uma boa pergunta seria quem a subsidia).