Caras e caros,
submeto a vocês o texto enviado pela leitora que pede para ser identificada apenas como “Leila Dionisio”. Ela faz uma crítica sobre a série brasileira “De volta aos 15”, da Netflix, protagonizada pela atriz Maisa Silva.
Não é de hoje que a Netflix em particular e a televisão em geral se tornaram parte inseparável da indústria da “identidade de gênero”. Diariamente recebemos mensagens de mães, pais e adultos sem filhos denunciando outras séries, desenhos animados e filmes voltados para crianças e adolescentes insistindo na ideia de que meninos e homens poderiam ser “meninas e mulheres trans”, meninas e mulheres poderiam ser “meninos e homens trans” ou que ambos poderia se “autoidentificar como outro gênero” (“não binário”, “agênero”, “bigênero”, “genderqueer” etc.). Com a fé inabalável de quem acredita ter descoberto algo novo e revolucionário, os pequenos e jovens espectadores acusam de “transfobia” os que explicam que, infelizmente, nem tudo o que acreditamos ou sentimos corresponde à realidade.
Eu entendo o quanto pode ser difícil para você sofrer uma acusação de “fobia” quando está apenas expressando fatos – ainda que estes sejam negados diariamente pela mídia, por autoridades, órgãos públicos, empresas privadas, celebridades e as vorazes organizações da sigla “LGBTQAIP+”. Mas não há outro jeito senão insistir na verdade. Se você for pai, mãe, professor, professora ou outro adulto responsável pelo cuidado de um menino ou menina, espero que construam uma relação de confiança suficiente para que ele ou ela acredite em você.
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Em defesa de César
Quando a série De Volta aos 15 surgiu na Netflix, logo me interessei. Sou uma pessoa nostálgica, ainda mais em tempos tão difíceis. E ainda no assunto de tempos difíceis, algo leve para assistir antes de dormir e silenciar a ansiedade é sempre bem-vindo. Foi em busca desse resgate de tempos mais simples que comecei a assistir o primeiro capítulo da série teen brasileira.
No primeiro capítulo somos apresentadas ao César, um rapaz com um estilo que poderia ser classificado como “emo” em meados dos anos 2000. Podemos ver que ele expressa sua identidade com muita coragem, apesar dos julgamentos (quem viveu a época lembra o quanto rapazes emos eram chamados de gays de forma pejorativa e o quanto a homofobia era mais escancarada entre os jovens). A personagem principal, Anita, anuncia César como “uma pessoa perfeita dessa, que se ama e se entende do jeitinho que é”, em contraste com os habitantes de sua cidade pequena e interiorana que se esforçam para parecer normais. César é realmente encantador. Mas, ao final do episódio, vemos que César, no futuro, é Camila, o que gera diversas perguntas.
Abro aqui um parêntese para mencionar que séries e filmes, especialmente originais dos serviços de streaming, vêm inserindo mais e mais personagens associados ao movimento T. As jornadas destes costumam ser, em maior ou menor nível, romantizadas. Mas o que ocorre em De Volta aos 15 é especialmente amargo.
A história de César, nos anos 2000, é exibida em paralelo com suas aparições já como “Camila” nos anos 2020. Enquanto César luta contra o bullying e enfrenta as dificuldades de ser um rapaz gay em uma cidade pequena, incluindo o relacionamento amoroso com o melhor amigo que não tem coragem de sair do armário e os atritos com o irmão (embora o pai seja compreensivo e dê apoio), “Camila” parece não ter dificuldade nenhuma, pois tem a tal da “passabilidade”. No papel de Camila temos Alice Marconi, que também roteirizou a série. No livro que originou a versão da Netflix, César não se torna Camila no futuro. Alice também roteiriza e atua em “Manhãs de Setembro”, série da Amazon Prime com Liniker como protagonista, lidando com um filho que abandonou no passado (algo que inúmeros homens fazem sem medo de represálias no Brasil). Em entrevista, Alice diz:
“Enquanto menino gay, sofri preconceito e fui arrancada do armário quando meu primeiro beijo foi exposto nas redes sociais. O bullying, então, se tornou insustentável. (…) Meu pai disse que aceitaria um filho homossexual, contanto que não fosse efeminado. Até o último ano da escola, engoli essa parte feminina de mim. Passei a me entender como mulher aos 20 anos e, aos 21, estava usando hormônios — hoje, ainda bem, meus pais são mais militantes da causa trans que eu.”
Alice, assim como César, também cresceu em uma cidade do interior de São Paulo e também sofreu bullying. Mas, quando o destino de César se tornou o mesmo de Alice, podemos ver que ele acabou por sucumbir às expectativas sociais: para poder ser “efeminado” ele, precisou criar uma narrativa na qual ele não era mais um homem e sim “uma mulher no corpo de um homem”. Aquele menino que se aceitava do jeitinho que era se tornou um adulto com um corpo desmontado e remontado, moldado por uma série de procedimentos perigosos e doloridos, um paciente vitalício, eterno. Claro que nada disso é exposto na série: como a mágica que faz a protagonista ir e voltar no tempo, “Camila” substitui César. Tão simples quanto tirar uma calça e colocar um vestido.
Sendo a série para o público teen, que sabemos ser um dos principais alvos do ativismo T, não pode ter sido por acaso a escolha de omitir tais procedimentos e tratar a “transição” como um caminho natural e sem consequências graves para um rapaz que fugia dos estereótipos impostos ao seu sexo. No fim das contas, a mentalidade conservadora da cidade vence: se na verdade César for “uma mulher presa no corpo de um homem”, seu principal conflito desaparece. Mulheres não só podem como devem se relacionar com homens, de acordo com o socialmente aceito em esferas conservadoras. A transformação de César é sua cura gay.
Em uma cena no fim da série, “Camila” encontra um adolescente do sexo masculino com cabelos (peruca?) longos e estilizados de uma forma feminina, usando maquiagem e batom. O adolescente diz que seu nome é André, depois corrige para Ana, e diz que Camila foi uma inspiração sem a qual não conseguiria aguentar seu contexto. A protagonista diz que acha que aquele momento foi a coisa mais linda que ela já viu na vida. O pai de “Camila” diz estar orgulhoso, o irmão diz que todo mundo sabe que “Camila” é a pessoa inteligente da família. “Camila” diz que quer facilitar pra “elas”, referindo-se a adolescentes do sexo masculino que acreditam ser mulheres.
Mas será que isso seria realmente facilitar? Facilitar o que? Em que momento César, que não apresentava nenhum sinal de desconforto com seu corpo, entendeu que precisava passar por diversos procedimentos dolorosos, perigosos e caros para poder ser quem era? De que maneira estimular meninos gays e/ou desviantes dos estereótipos a acreditar que são, na verdade, do sexo oposto é libertador? Se César era rejeitado pelos colegas e pelo irmão e “Camila” recebe todo o amor e admiração, que mensagem nossas crianças e adolescentes estão recebendo e absorvendo?
Por que, em 2022, não foi permitido a César ser um rapaz gay e transgressor em seu próprio corpo saudável? Por que ele precisou deixar de existir como César para emular uma mulher hetero? Por que sua existência incômoda para a sociedade heteronormativa precisou ser apagada?
Eu gostaria de dizer para todos os jovens que está tudo bem ser como o César. Que o César é perfeito como é. Que não existe comportamento e sentimento de mulher e de homem. César não deveria ter que mudar seu corpo, se colocando em risco em cirurgias e dependendo de medicações eternamente para ser admirado e amado. César merece se amar e se entender do jeitinho que é, de verdade. E nossas crianças e adolescentes também.