Cara leitora ou caro leitor,
enquanto as próprias mulheres assinam um abaixo-assinado para cassar o mandato de um parlamentar que diz que elas não são homens de peruca – ou seja, que falou uma verdade – um leitor homem enviou um texto apontando como o transativismo elimina direitos do sexo feminino. O título faz referência ao nome do livro escrito pela filósofa Marcia Tiburi: “Feminismo em comum: para todas, todes e todos”. Concordamos com o leitor, que pediu para ficar anônimo, e insistimos: é impossível defender direitos de mulheres e meninas sem que elas possam ser definidas e é impossível compatibilizar direitos baseados no sexo com o apagamento do sexo.
Lembramos que a nossa campanha é suprapartidária e suprarreligiosa; assim, opiniões do leitores e leitoras sobre política em sentido escrito refletem apenas a deles mesmos e não necessariamente a da No Corpo Certo.
Abraços,
Eugênia Rodrigues
Jornalista
Porta-voz da campanha No Corpo Certo
O feminismo é para “todes”?
Estamos vivendo um momento bastante problemático nas relações entre as mulheres e o transativismo. Existe uma certa confusão proposital entre as pautas e os objetivos das respectivas militâncias. Há um esforço em celebrar uma ampla luta progressista que seria ótima para todos os envolvidos embora uma simples análise dos fundamentos de cada um dos grupos deixe bem claro que as questões são diferentes e, em alguns casos, até opostas. Dois problemas surgem ao tentar analisar essa questão; vamos analisá-los.
Primeiramente, existe uma interdição ferrenha do diálogo. Teoricamente, ser progressista é ser incondicionalmente a favor do transativismo. É comum ver os mais
diversos argumentos (ou melhor, não-argumentos) tentando mostrar que os grupos que questionam os pressupostos da autoidentificação de gênero são conservadores. O que nos
deixa em uma encruzilhada: você vai se aliar ao conservadorismo mais rasteiro? Como eu, o mais progressista entre os progressistas, posso estar “concordando com um bolsominion”? Esse primeiro ponto salta à vista ao conversar com qualquer pessoa do campo progressista. Há uma identificação com a “causa trans” como se fosse uma compra casada: tudo o que meu “inimigo” odeia eu tenho que necessariamente apoiar. É uma falácia perigosa! Muitos subscrevem questões que não analisaram mais profundamente somente para se manterem na crista da onda do progressismo.
Muitas pessoas continuam nessa forma superficial de analisar essas questões até que ocorre o chamado “peak trans”. A pessoa, que até então dava como certo que no pacote do progressismo existia uma cota de apoio incondicional ao transativismo, começa a perceber que existe uma diferença entre os objetivos que ela busca para si, principalmente como mulher, e as metas que as supostas “mulheres trans” almejam. É comum nessa fase de questionamento se culpar por estar com pensamentos ditos “conservadores”, “transfóbicos”… Estamos acostumados a sequer questionar se tudo o que nos foi empurrado no pacote do progressismo é verdadeiramente resultado de minha reflexão ponderada, seguida de concordância, sobre o tema. Somos compelidos a concordar, pois que quer ser o conservador? Quem nunca sentiu a superioridade moral, frente ao parente “bolsominion”, de reconhecer todas as letras na sigla para sempre em mudança dos LGBTQIA+…? Mas e se no final das contas esse “parente bolsominion” somente estivesse vendo as coisas como realmente são?!
Nesse ponto é importante observar que podemos ser contra uma determinada questão, de maneira semelhante a um conservador, mas por convicções diferentes. Não é porque Hitler gostava de cachorros que hoje, ser fã do melhor amigo do homem me torne um nazista de marca maior. Temos que ter cuidado com as conclusões precipitadas.
Ao sanear um pouco essas definições que poluem as discussões envolvendo esses temas podemos adiantar um pouco a reflexão. Concordo que é bem complexo mesmo
diferenciar as concordâncias precipitadas: não é por ser progressista que sou a favor de tudo e nem por questionar certas proposições que me torno o bolsominion mais radical que é contra tudo e contra todos.
Dito isso, pensemos um pouco sobre a proposta feminista. O feminismo como movimento surge como uma crítica aos papéis de gênero que a sociedade (centrada no homem) defininiu que seriam das mulheres (pessoas do sexo feminino). Uma mulher ao nascer necessariamente deve cumprir uma série de papéis que supostamente lhe são inerentes: ser submissa, paciente, carinhosa, sensível, emotiva, vaidosa, comunicativa, passiva…
O feminismo sempre buscou questionar esse raciocínio de causa e consequência: existe uma forma de se portar (expressão de gênero) pelo simples fato de alguém ser mulher? E ao levantar essa questão lembro aqui a famosa frase de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Esse tornar-se mulher não é de forma alguma a suposta autoidentificação como mulher. O resto da frase é bem explicativo que não é disso que se trata: “Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.”
Deve ser por isso que a frase geralmente é citada de maneira amputada! O tornar-se mulher é, em outras palavras, a forma que a fêmea humana vai assumir na sociedade. O feminismo critica e esmiuça justamente essa forma que a mulher vai assumir na sociedade. Essa forma não surge por escolha das mulheres, mas é o resultado de tudo aquilo que o homem não é. Por isso o título da obra é O Segundo Sexo. O homem seria o primeiro sexo e tudo o que não o representa fica como expressão feminina.
Vejam que o feminismo não nega o sexo biológico, ele é um fato incontornável. E, justamente por ser um fato, é que ele serve como base para criticar as consequências que advêm dele. Portanto, existe uma forma de expressão que seja própria para a fêmea humana? Existe um papel que a mulher não pode se furtar de realizar simplesmente por ser uma fêmea humana? Fica claro que o feminismo critica e analisa os papéis que não são fatos dados como o sexo biológico! O feminismo mostra que o gênero não existe, ele é uma convenção social, um construto cultural. A luta é justamente para emancipar as mulheres das prisões forjadas em cima de uma suposta realidade do gênero imutável para elas. Não existe essa correlação entre o sexo biológico e quaisquer papéis sociais.
Diante de tudo isso, como fica uma feminista que recebe a singela informação de que o sexo biológico simplesmente não importa, que o que é realmente verdadeiro é o gênero?! Como não perceber que isso é exatamente o oposto da argumentação feminista? Será que a alegada “TERF” (“Feminista Radical Trans Excludente”) não é na verdade a feminista que entendeu as bases de sua luta? Como não se incomodar com os apóstolos da autoidentificação que resumem o “ser mulher” ao simples ato de usar salto alto? Como uma vez li em um comentário no Twitter sobre isso, uma vez que você viu, não é possível desver! O transativismo é o exato oposto do feminismo! E, para piorar, o transativismo toma como base argumentativa algo que é fácil de perceber como construído socialmente; não há como não perceber que as expressões de gênero que cada sociedade até então atribuiu às fêmeas humanas são as mais diversas ao longo do tempo e no espaço. Como poderemos hoje simplesmente ignorar um fato como o sexo biológico em favor de algo mutável como o gênero?!
Precisamos debater abertamente esses temas. A interdição não favorece de maneira nenhuma a conscientização das mulheres sobre o risco que seus direitos estão correndo. A cada dia que o transativismo avança naturaliza-se a misoginia e a agressão de mulheres. Os direitos que foram duramente conquistados pelas mulheres são conquistas que se deram por causa de uma luta que objetivamente estava em curso pelo simples fato de serem fêmeas humanas e não por usarem salto alto.
Finalizo com o excelente resumo feito por Kara Dansky em seu livro “The Abolition of Sex”:
“O fato de o sexo estar sendo abolido é amargamente irônico, porque as feministas – ou seja, aquelas que trabalham pela libertação de mulheres e meninas como uma classe de seres humanos – vêm pedindo expressamente a abolição do gênero há décadas. Como afirma a estudiosa feminista Sheila Jeffreys, ´[t] ransgenerismo depende, para sua própria existência, da ideia de que existe uma ‘essência’ de gênero, uma psicologia e padrão de comportamento, que é adequado para pessoas com corpos e identidades particulares. Isso é o oposto da visão feminista, que é a de que a ideia de gênero é a base do sistema político de dominação masculina´”.
Se “identidade de gênero” significa alguma coisa, significa conformidade com o conjunto de estereótipos sexuais que são impostos ao sexo oposto – por exemplo, a expectativa de que as
mulheres usem salto alto. Para as feministas, a libertação significa que as mulheres se libertam da expectativa social de que as mulheres usem salto alto. Mas para os ideólogos de gênero, usar
salto alto é uma das coisas que fazem de uma pessoa uma mulher. Então, hoje, um homem que usa salto alto pode se chamar de mulher com base nisso. Essa nova forma de ideologia de gênero,
que foi reforçada pela chamada “Teoria Queer” na academia, é extremamente antifeminista, antimulher e politicamente regressiva.