(Observação inicial da campanha No Corpo Certo

Esta denúncia deixou nossa equipe profundamente chocada. Por ser em primeira pessoa e pelos fatos terem ocorrido no Brasil, há uma proximidade angustiante.

O relato está alinhado a muitas mensagens que recebemos de psicólogos e psicólogas do país e reforça a necessidade, urgente, de revisão da Resolução nº 1/2018 do Conselho Federal de Psicologia. Conforme eles (as) nos alertam, essa norma coloca em risco terapeutas, pacientes e também familiares de pacientes por impedir psicólogos e psicólogas de cumprirem seu dever ético e profissional.

A história também está alinhada a denúncias que recebemos de que endocrinologistas, ao contrário do que muitos acreditam, não estão exigindo avaliação psicológica e ou psiquiátrica para prescrever e aplicar hormônios artificiais; nem mesmo quando atendem menores de idade. Eles não estão cumprindo nem mesmo a  Resolução nº 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina, que reputamos como perigosa e irresponsável mas que, ao menos, sugere acompanhamento psiquiátrico. Esta menina tinha, à época das aplicações de testosterona, apenas 15 anos!

Lamentável, igualmente, a atuação de organizações transativistas. A sociedade acredita, ingenuamente, que a redução da idade mínima para hormônios e cirurgias no Brasil teria sido fruto de uma medicina baseada em evidências, independente e apoiada em critérios científicos e materiais. Mas a própria Exposição de Motivos da Resolução nº 2265/19, do Conselho Federal de Medicina, admite ao final:

Chamamos a atenção também para o papel exercido pela família da paciente “X.” Nossa campanha evita ao máximo responsabilizar as famílias das crianças e jovens rotulados como “trans” porque conhecemos de perto a pressão exercida sobre eles, seja por indivíduos genuinamente bem-intencionados, seja pelo pequeno grupo de profissionais de saúde e ativistas que monopolizou o debate para lucrar com a ideia de “corpos errados”. Porém, perguntamos a você, com honestidade: considerando que as responsáveis por “X.” aceitaram sua autodeclaração como rapaz tão rápido, quais as chances que ela teria de se reconciliar com sua realidade material de menina? Como se aceitar, se todos e todas à sua volta abraçaram tão fervorosamente sua “nova identidade de gênero”? Que chances têm então as crianças que estão sendo “afirmadas” quando pequenas, em idades nas quais ainda se acredita em Papai Noel? Aos cinco anos, por exemplo, como a mais nova “criança trans” brasileira?

Crianças e adolescentes estão sendo ensinados de que “podem ser realmente meninas” ou “estão se transformando em meninos de verdade”. Nada disso é real. Nós sabemos. O sexo biológico é imutável, e o “gênero”, os estereótipos, não fazem de uma menina um menino e vice-versa. Montando o quebra-cabeça dessa verdadeira histeria coletiva criada pela medicina e reforçada por ativistas, reforçamos a suspeitas de que a “disforia de gênero” não é uma condição médica autônoma, mas sim um sintoma de outras condições, médicas e não médicas.

Segue agora o relato enviado. Aguardamos sua opinião. Forte abraço,

equipe No Corpo Certo).

 

O relato chocante de uma psicóloga que atendeu uma adolescente “homem trans”

Sou psicóloga clínica especialista em Psicologia Analítica (Junguiana). Após ponderação, devido ao período de censura no qual nós psicólogos estamos vivendo (e eu falarei sobre a minha percepção mais à frente), tomei a decisão de compartilhar minha experiência no atendimento de um caso de transgeneridade: uma adolescente de 15 anos. A atendi durante 4 anos. Quando falo de transgeneridade, adolescência e associo à psicoterapia, falo de disforia de gênero, transição hormonal e cirurgia, contágio social, influência da internet, depressão, censura ao profissional de psicologia e a nossa velha conhecida (e teoricamente repudiada pelos progressistas) “cura gay”.

Pois bem. Inicio a história. E vocês entenderão a necessidade de se falar sobre isso. É preciso falar.

X era uma jovem de 15 anos. O ano era 2015 e quem entrou em contato comigo foi sua segunda madrasta. Perguntei pela mãe e pai da adolescente também, para marcarmos uma entrevista antes de atendê-la, como é de praxe, já que é menor de idade, mas a madrasta diz que o pai é terrível e incomunicável, que só haveria a possibilidade de ir as duas, ela e a mãe biológica (elas eram um casal lésbico). Mesmo assim eu pego o contato do pai e tento falar com ele, todavia sem sucesso. As duas vêm até mim.

E contam: X morava até então com o pai. A guarda era dele. A mãe a teve na adolescência e não pôde criá-la; passaram todos estes anos sem convivência e agora voltaram a se encontrar. Nesse ínterim, X começa a ter uma crise muito grande de identidade e passa a se identificar como homem trans. Elas levaram X a uma psicóloga antes de mim; contudo, esta psicóloga, segundo elas, foi descartada e ameaçada de processo, pois se negou a reconhecer X como homem trans; a psicóloga não legitimou a autodesignação da adolescente (e, vale pontuar, a designação também das mães – como a própria adolescente as chama, com carinho). Nesta conversa inicial eu já senti o peso da demanda, da cobrança, e do objetivo DELAS para a terapia de X: legitimar o discurso de autoidentificação como transgênero. Já li também, sem sequer ainda ouvir a voz e ver o rosto de X pela primeira vez, a ameaça subentendida na história contada sobre a psicóloga anterior. Havia muita coisa nas entrelinhas. Confesso que fiquei um pouco tensa.

Topei atender, pois ao mesmo tempo em que percebi uma força já contrária ao meu ideal ético de liberdade para trabalhar e à autonomia do meu paciente, vi que X estava em grande sofrimento, passando por bullying na escola, deprimida, com pensamentos suicidas segundo as mães. Eu queria ver a jovem, e aí veríamos nós duas juntas como as coisas iriam se desenrolar. No fim das contas, eu ficaria a sós com ela nas sessões, então haveria esse espaço sem a influência e pressão externa que eu já havia detectado. Como psicóloga sei que é natural e frequente uma certa tentativa de exercício de poder dos pais sobre o menor no processo terapêutico (e até sobre o psicólogo) e nosso dever é isolar isso o máximo possível, dando à criança/adolescente a autonomia necessária para o estabelecimento da sua saúde mental. E autonomia tem a ver com poder de escolha, decisão e respeito de espaço. Aos responsáveis, cabe saber o necessário e o importante, sempre. Jamais dar o controle do processo. O processo é do paciente. Mesmo que seja um menor de idade.

Enfim. X veio ao meu consultório. Uma moça alta, muito bonita considerando os padrões vigentes, muito tímida, mas ainda uma menina. Uma adolescente de 15 anos. Adolescente que via desenhos no Cartoon Network, como Steve Universo, Hora de Aventura. Uma menina que nunca tinha sequer namorado, mas me contou que se via como lésbica até se perceber como homem trans. Ela gostava de desenhar. Tinha um caderno maravilhoso de desenhos. Talentosíssima. Muito criativa. Uma menina. Ingênua, angustiada pois não sabia se faria Matemática ou História no vestibular. Cheia de contradições de adolescente. Cheia de possibilidades e escolhas por fazer. Muito inteligente também, apesar das dificuldades de concentração.

X nesse primeiro encontro estava muito nervosa, então eu quis fazê-la se sentir bem comigo, à vontade. Não fui invasiva. Perguntei somente se ela sabia exatamente o que estava fazendo ali, do porquê suas mães a trouxeram. Ela respondeu que sim. Que era porque estava deprimidO, disfóricO por ser um homem trans, estava sofrendo preconceitos de todos os lados e precisava transicionar logo, pois odiava o corpo e queria resolver o problema. Só que não queria falar mais sobre aquilo. E fechou o rosto, bem séria. Fiz então uma tentativa de ganho de confiança. Falei para ela me perguntar o que quisesse saber. E que falaríamos do assunto que ela estivesse a fim. E aí a sessão fluiu. E descobri seus gostos pessoais.

Daí para frente, as sessões foram caminhando, e a questão central, obviamente, surgiu. E surgiu junto com um tabu enorme. Muita coisa não podia ser dita. Não se podia falar palavras como seios, menstruação, mulher, nada disso. Tudo isso era “gatilho” e imediatamente ela fechava a expressão e parava totalmente de falar. Era silêncio absoluto.
Se qualquer coisa tocasse na “mulheridade”, no ser fêmea, havia um constrangimento absurdo. Se partisse de mim, era como se eu tivesse cometido uma ofensa. Se ela “escorregasse” e fizesse menção, era tido como um trauma sendo revivido. Importante pontuar que, desde a primeira sessão, eu tive que me referir a X no masculino. Desde a
entrevista com as mães. Qualquer erro era considerado ofensivo. Então eu pisava em ovos. Estava alerta o tempo inteiro.

Como psicóloga, me incomodava muito o fato de não poder questionar absolutamente nada. Havia muitos tabus discursivos. E a questão é que chamar ao diálogo mais profundo poderia se transformar em ofensa e “transfobia” em um estalar de dedos. Veja, eu digo “chamar ao diálogo”. Não falo orientar, sugerir, negar e nem afirmar absolutamente nada. Falo de aprofundar a vivência do sujeito, através de questões e a partir do que ele mesmo vai trazendo também. E X trazia. O tema “trans” era muito central, aparecia o tempo inteiro, não importa do que ela falasse. Por trás dele haviam muitas outras coisas, mas o tema em si, gritava por ser visto, discutido. Mas era difícil, muito difícil. Qualquer coisa que desagradasse poderia virar ofensa, “transfobia”. E me digam, que terapia é agradável?

Bom, isso começou a me preocupar. Pois não era apenas uma dificuldade da paciente ou talvez minha de quebrar uma barreira. Era uma barreira legal, normativa, fixada pelo meu próprio Conselho de Psicologia. Eu ver que falar sobre seios, útero, sexualidade, transição, a vida como menina que ela teve, tão doída, perguntar sobre como é se sentir um homem, o que isso significa, como isso começou, era um tema tão duro, e justamente por isso ser fundamental ser trabalhado, falado, verbalizado, era passível de CENSURA e PROCESSO se decidirem que eu não estou legitimando a autodeterminação como homem trans quando eu questiono acerca das dores, dos sentimentos, foi algo absolutamente inédito pra mim na clínica. Isso me chocou muito. Me incomodou. Me frustrou. Pois atou as
minhas mãos. Temas ligados ao ser menina, mulher lésbica ou homem hétero (uma cura gay?), apareciam o tempo inteiro, pois havia um sentimento de disforia enorme. Era fundamental falar sobre isso, aprofundar essas dinâmicas psicológicas. Entretanto, por diversas vezes, ela se queixava para as mães, as quais vinham me cobrar. O meu “dever”
era legitimar o discurso manifesto, pronto, e para a minha surpresa, eu me deparei com este mesmo posicionamento dos meus superiores!

Psicólogo faz perguntas! A cada um que senta à sua frente e vem contar a sua história. Não existe psicólogo que valida identidade alheia. Cada um valida a sua. Esse não é o nosso trabalho. Vou dar um panorama geral agora, pois foram quatro anos de sessões.

X me relatou que sempre se viu como uma menina lésbica “masculina”. Foi criada pelo pai e uma madrasta, ambos evangélicos, que a obrigavam a se feminilizar, fazer escova progressiva nos cabelos (ondulados) desde criança, usar vestidos, se depilar desde menina. X cresceu, entrou na adolescência, e começou a querer sair desses padrões.

Começaram conflitos em casa. Ela buscou contato com a mãe e a esposa da mãe. Nisso, mudou de escola. Ao ver a mãe, lésbica e casada, certamente se inspirou nelas, e começou a se libertar das amarras da criação que teve com o pai. Isso foi ótimo para X, a meu ver. Foi talvez a inspiração que ela precisava. O pai de X dizia que não aceitaria uma filha “sapatão”; pra ter uma filha sapatão, preferia um filho “macho”.

X passa a frequentar a casa das mães e faz novos amigos. As mães são militantes LGBTQ+ muito atuantes no movimento; todo o círculo social delas são de LGBTQ+ e X entra neste universo completamente deslumbrada, pois é o oposto do que havia vivido até então, um ambiente religioso, de uma heterossexualidade imposta, de uma feminilidade imposta violentamente, que ela tanto detestava. Ali ela viu um oásis de liberdade a princípio. Ela deixa claro para mim que há um amigo adulto que foi uma grande influência para ela, uma mulher trans, amiga das mães. Essa mulher trans a inspirou nesse processo de autodescoberta. Todavia, algo que me saltou aos olhos e questionei junto a ela: foi quando eu perguntei como e quando ela se descobriu um homem trans. E X disse: “Eu estava mais próximo da minha mãe agora, então comecei a perceber que eu nunca fui nada daquilo que eu era com o meu pai. Eu sou diferente, eu não me encaixo em nada de mulheres. Comecei a reparar nos amigos das minhas mães, todos livres…Estava muito angustiado uma noite, e fui para a internet ver se eu achava alguma explicação para o que eu sentia. E aí eu encontrei a explicação em um site que encaixava perfeito e fechei: eu sou um homem trans. Levei uns dias, e consegui contar para elas. E deu tudo muito certo. Buscamos as Mães pela Diversidade”.

Após isso, X foi expulsa de casa pelo pai. Quando ele soube, X já estava em terapia comigo. Eu novamente busquei contato com esse pai, sem nenhum sucesso, pois ele certamente estava achando que eu colaboraria para esta empreitada. Foi um período tão difícil que a avó paterna de X, que é lésbica, me procurou por telefone, preocupada de eu contribuir para esta situação e incentivar a hormonização e a autoidentificação de X. A avó me dizia nervosa que X era apenas uma menina lésbica e que estava preocupada com o que estava se passando com ela, com as influências, com o que ela andava vendo, pois estavam perdendo contato. Eu nada pude falar, obviamente, por questões de sigilo profissional, mas fiquei refletindo no quão complexa é essa situação, em quanta coisa há em jogo e quem sai ganhando e perdendo com isso. Bom, perdendo eu pude identificar logo: X. Perdendo muito.

O tempo foi passando e a dificuldade de falar sobre o assunto, as questões em torno do “ser trans” continuavam. Então seguimos… eu fui abordando sempre de forma simbólica, através de desenhos e análises de sonhos, pois são ferramentas próprias da minha abordagem, mas mesmo assim era difícil, pois sempre que vinha à consciência dela a dura realidade, o que ela sim, sabia, ela novamente se fechava e recusava a atividade, encerrava o diálogo. Eu tocava no ponto, falávamos dele, mas até certo ponto. Eu não podia ir além, há limites; psicólogo não é salvador. Eu sabia que ela estava em conflito, que não havia tantas certezas como ela fazia questão de demonstrar, mas havia um forte processo de negação e resistência em atividade. Ela estava extremamente avessa ao diálogo, ao questionamento, com uma postura rígida e um pensamento de seita mesmo, eu detectei isso logo no início; qualquer um que questionasse a ideologia das pessoas trans, do sentimento de uma pessoa trans, era automaticamente visto como um inimigo, e eu estava ali, na linha tênue entre aquela que está para auxiliar e a inimiga “transfóbica”. Bastava uma pergunta errada. Bastava uma negativa. Justamente por conhecer muito bem o nosso Código de Ética, eu jamais a orientaria em algum sentido de negar ou afirmar algo categoricamente; jamais pregaria algo a ela. Há um profundo respeito à individualidade e vivência do paciente. Mas eu precisava fazer perguntas. Pois ela era uma adolescente! E estava na iminência de fazer mudanças corporais que influenciariam o resto da sua vida. Ela estava decidida a transicionar. Com todo o aval das mães e sem o conhecimento do pai.

Cabe aqui falar brevemente sobre adolescência. X quando começou a transicionar, tinha apenas 15 anos. Com 15 anos ela se autodesignou um homem trans heterossexual (lembrem-se, era uma menina lésbica. Ao virar um homem hétero, me lembra a ultraconservadora cura gay, não mais com Bíblia, e sim com hormônios. O desejo do pai era um
filho macho a uma filha sapatão. O desejo dela também era o amor e a aceitação da mãe militante LGBTQ). O CFP nos diz, em uma Resolução (01/2018), que é dever do psicólogo legitimar a autodesignação das pessoas trans. Porém, não faz especificação sobre idade. Ou seja, fica em aberto, quanto a crianças, adolescentes. A adolescência é um período do desenvolvimento entre a infância e a fase adulta, onde as estruturas psíquicas do indivíduo ainda não estão sedimentadas, as funções cerebrais ainda não atingiram o ápice do seu desenvolvimento e maturação; profissionais da área da saúde sabem (ou deveriam saber) que uma das últimas áreas do cérebro a ser terminada, em torno dos 20 anos é a frontal, a qual controla impulsos e molda as perspectivas de futuro. Por isso, os adolescentes costumam, por exemplo, serem mais impulsivos (logo, descobrir ser trans em uma noite na internet e tomar a decisão de transicionar com o apoio cego das mães me pareceu muito precipitado, para não dizer absurdo). Adolescência é período também onde a sexualidade está florescendo e se definindo, na infância não há orientação sexual definida pois não há atividade sexual, investimento objetivo do desejo sexual em um objeto; o ego de um adolescente ainda é frágil, está em plena formação, sua personalidade igualmente; ele está descobrindo o mundo, testando, reivindicando seu lugar, vivendo o luto da infância e a angústia de crescer. É um período turbulento. Todo psicólogo, todo profissional da saúde sabem disso. Nesta fase, é mais delicado fechar diagnósticos psiquiátricos por exemplo, justamente pela personalidade ainda estar em formação, a identidade não estar definida plenamente, e o humor ser bastante instável, fluido. Mauricio Knobel é um dos estudiosos da adolescência e segundo ele existem algumas características, ou um conjunto de sintomas; presentes nos adolescentes, característicos desta fase do desenvolvimento. Alguns exemplos: busca de si mesmo e da identidade (aqui podem entrar um processo de encontros fortuitos, paixões, transitoriedade, reformulação da autoimagem, auto definição corporal e psicológica); necessidade de intelectualizar e fantasiar (evolução para o raciocínio hipotético dedutivo); sexualidade (muitas descobertas, que podem ser vividas com muita ansiedade); condutas contraditórias (inclui necessidade de experimentação constante), entre outros “sintomas.

Diante disto, eu, como psicóloga, me preocupei muito com a questão de X encarar um processo de transição de forma absolutamente impulsiva e com um apoio e incentivo nos quais não cabia o menor questionamento. Mais do que isso: questionamentos eram proibidos. Familiares e amigos que questionavam eram vistos como intolerantes e
“transfóbicos”; eram cortados.

Eu já estava aguardando o momento em que iriam me pedir um laudo ou parecer para darem início ao processo de transição e eu iria negar, obviamente, e haveria, finalmente, o conflito aberto, mas não. Não foi preciso nada disso.

X, chegou em uma sessão radiante, pela primeira vez sorrindo, dizendo que foi a um endocrinologista (15 anos!), disse que era trans e o médico prontamente lhe passou testosterona. Eu não pude evitar a minha expressão de choque e ela ficou ofendida. Mas realmente não deu!

Perguntei como ele pôde fazer isso, pois ela era menor de idade, não haviam exames, fora os malefícios que poderiam causar. Ela, aborrecida, se limitou a me mandar estudar, pois ela já havia se informado e não havia comprovação de que os hormônios naquela dose causariam mal ao longo dos anos. Que o próximo passo seriam a mastectomia e a histerectomia.

E assim foi. Eu vi X transicionar, modificar totalmente dos 15 aos 19 anos. Usando sempre binder e packer para dar volume na cueca. Cresceu barba, pelos, mudou a voz, nasceu pomo-de-adão, a textura do cabelo mudou, vieram espinhas, se sentiu mais agressiva e mais disposta sexualmente, começou a namorar. Trabalhamos algumas questões
importantes como a depressão, a tentativa de suicídio pelo forte bullying que enfrentou quando estava na escola, onde recebeu ameaça de agressão por parte dos colegas caso ousasse usar o banheiro masculino (iria “apanhar feito homem”, mas ela também se recusava a usar o banheiro feminino), o ódio ao próprio corpo. Mas… o “me sinto, logo sou homem”, era o tabu. Isso era proibido. E se algo é proibido de se falar, temos um problema.

Quando começou a namorar, surgiu outra questão a qual me chamou muita atenção e fui pesquisar: o contágio social! A namorada de X era da mesma escola. Ela, e mais duas colegas, meninas, viraram homens trans neste período. Isso me chamou muito atenção. De homem trans hetero, X passou a ser considerado homem trans gay; porém, se formos analisar de perto, e levando em consideração o conceito de orientação SEXUAL, continuam a ser um casal lésbico! Esta situação me causou estranheza, e, buscando, encontrei depois um artigo acadêmico de Lisa Littmann, onde ela cria o termo ROGD- Rapid Onset Gender Dysphoria, ou, traduzindo, DGSR – Disforia de Gênero de Surgimento Repentino. É um tipo de disforia de gênero que abarca majoritariamente meninas na adolescência, altamente influenciada pela internet e pelo contágio social. Pronto. Diagnóstico feito! Exatamente o caso das quatro! Inclusive X: influência/contágio social e internet! Aquilo me gerava cada vez mais contrariedade e maior sensação de censura, tanto por parte do meio LGBT quanto pelo próprio Conselho da minha categoria, que me impedia de questionar; mais que isso, me obrigava a legitimar o discurso, sob pena de processo e cassação. Perguntar “Por que você acha que é um homem trans?” já bastaria para eu sofrer uma investigação por “transfobia”, se ela achasse ofensivo.

O processo seguiu, ela saiu da depressão, fez as pazes com pai, superou o bullying, a automutilação, a disforia (que chegava ao ponto de já ter se feito passar por muda na rua para não dar informação para não ouvirem a sua voz feminina); eu fui abordando a questão trans de outras maneiras não diretas e sem puxar dela, pois ela mesma as trazia para mim sem perceber. Ela trazia involuntariamente de forma inconsciente em todas as sessões nos mais variados assuntos. Então assim fomos falando, mas sempre de forma simbólica. Quando chegava perto da ferida, da infância de feminilidade, de querer ser aceita a todo custo pela mãe ausente uma vida inteira que ela descobre ser ativista LGBTQ+ e cercada de amigos transativistas, onde ela viu a possibilidade de se libertar dos traumas e repressões; quando chegava perto da lembrança do pai falando que prefere um filho macho a uma filha sapatão, quando mesmo através de uma abordagem indireta eu acessava isso, ela se afastava e se fechava. Mas mesmo assim eu via que surtia algum efeito terapêutico, pois por mais que ela franzisse a testa pra mim, aquilo tudo vinha na consciência dela, e ela não podia negar que havia um conflito. Eu botava a pulga atrás da orelha dela. Ela sabia, lá no fundo, que ela não era um homem. Tanto sabia, que fazia um esforço hercúleo para defender isso. No final dos quatro anos, depois de muitos desenhos expressivos do seu conflito, onde ela desenhava com perfeição pessoas sentadas à mesa que da cintura para baixo eram mulheres e da cintura pra cima homens, desenhos sempre de figuras femininas chorando, ou objetos surrealistas, como lâmpadas com rostos com traços femininos, pois têm olhos com cílios alongados, bocas delineadas, etc… ela está de cirurgia marcada, a mastectomia, muito ansiosa no sentido positivo, e eu muito angustiada, na certeza de que ela vai se arrepender um dia, por tudo o que vi dela até então nas sessões.

Na última sessão antes da cirurgia, X tem um sonho.

Como junguiana, trabalho com eles, pois para mim, são um raio x dos processos inconscientes que estão contecendo em forma de símbolos. Pois bem. X sonha que estava em uma casa antiga, onde múmias milenares vagavam junto com outros mortos-vivos, e ela estava ali. Nervosa, não sabia o que iria acontecer, então queria se esconder. Viu um armário e tomou um susto ao ver que havia atrás da porta dele uma menininha de vestido rosa, ali sozinha e com medo, quietinha se escondendo das múmias. Eu fiquei olhando para ela em silêncio. Ela desviou o olhar. Aí eu perguntei: “Você conhece essa menina? Ela te lembra alguém? Imagino o quanto ela deve estar apavorada ali atrás do armário, cheio de cadáveres rondando a casa. Você poderia ter abraçado ela e ficado ali com ela”.

Não preciso contar a reação dela. Os olhos encheram de lágrimas, mas ela reagiu com raiva e quis encerrar a sessão. E encerramos. Eu não posso ir além do limite que a pessoa impõe. Não posso violentar o outro. Foram 4 anos difíceis, frustrantes em muitos momentos. Algumas vezes busquei auxílio de um supervisor pois foi difícil lidar emocionalmente com a censura, com o pisar em ovos na minha profissão, na minha clínica, onde o meu trabalho é justamente o perguntar, o mergulhar no mundo do outro, é visitar universos, é duvidar da superfície, não validar discursos e identidades, é o outro quem faz isso, não eu; eu questiono, eu faço o outro se ver, eu não nego nem afirmo.

Eu acredito, com tudo o que eu vi, que um dia X irá se arrepender. Por um lado isso é ruim pois sei que irá sofrer um bocado e não desejo isso a ela, me doeria ver, afinal, era só aquela menina que via desenhos, mas por outro sei que será a verdadeira libertação; agora já é também uma mulher adulta e como aprendi na minha formação, “não há despertar de consciência sem dor”.

Eu fui uma grande apoiadora do movimento LGBTQ. Até atender um homem trans de 15 anos. Ver ao vivo, no meu consultório, acompanhar todo o processo, e ver a dinâmica psicológica. Depois de tudo o que eu vi, eu saí desse culto. Porque eu vi tudo, menos um homem ali. Eu vi uma adolescente do sexo feminino, lésbica, sofrendo por conta de várias questões pessoais, fazendo parte de uma seita e sendo vítima de um contágio social. Eu não pude ver nada diferente disso. Eu não era crítica de gênero. Pelo contrário. Mas passei a ser, vendo tudo o que eu vi. Inclusive o apoio e incentivo irresponsável dos médicos.

Bom, é este o meu relato. Não tive mais notícias de X. Vi uma foto dela nas redes sociais há alguns meses e vi que continua na transição, aparentemente. Desejo que esta censura abrande, que possamos falar mais abertamente sobre isso, sem medo, sem anonimato, pois é um tema de extrema importância, que está atingindo adolescentes e também crianças em larga escala, como nunca se viu, e isso precisa ser discutido, questionado, problematizado sim. Há muito que se falar e eu tenho certeza que há muitos colegas psicólogos que passaram e passam o que eu passei e vêem o que eu vi mas não podem falar, são proibidos. Só se pode falar a favor. Questionar, jamais. Há pessoas que estão ganhando com isso. E há pessoas que estão perdendo. Muito. Essas são as mais vulneráveis. Crianças e adolescentes.

É por eles que precisamos lutar.