Leitores e leitoras queridos,
um dos pilares da nossa campanha é fomentar a discussão racional sobre determinados temas, garantindo o direito à liberdade de expressão de todos e todas – inclusive para vozes dissonantes. Assim, é com alegria que recebemos mais um texto da psicóloga Carolina Rabello Padovani. Desta vez, ela publica uma resenha do livro “Como curar um fanático“, do romancista israelense Amós Oz. Ele, que cresceu em Jerusalém, comenta a histórica polarização entre judeus e palestinos no Oriente Médio e, nas palavras do site Estante Virtual, “realiza um diagnóstico sutil sobre a natureza do fanatismo, calcada na predominância dos sentimentos sobre a reflexão”.
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Resenha do livro “Como curar um fanático?” de Amós Oz

Carolina Rabello Padovani

Onde temos razão, flores não podem crescer.
Yehuda Amichai

“Eu fui uma criança curiosa. Quase toda criança é curiosa. Mas pouca gente continua a ser curiosa em sua idade adulta e em sua velhice”, escreve Amós Oz. E o autor prossegue: “(…) em minha opinião a curiosidade também é uma virtude moral”.

Difícil falar em virtude e não lembrar de Aristóteles. O filósofo grego deixou um livro para seu filho (e para nós) intitulado “Ética a Nicômaco”. Nele Aristóteles escamoteia de ponta a ponta a virtude e a define como questão de hábito: há que se praticar a virtude, ela depende da experiência e alcançada, pois, por exercício.

Voltemos a Amós Oz: “(…) a curiosidade, juntamente com o humor, são dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos”. “Nunca vi em minha vida um fanático com senso de humor, nem nunca vi uma pessoa com senso de humor tornar-se um fanático, a menos que ele ou ela tenha perdido o senso de humor”.

Por falar em riso, Henri Bergson em “Ensaio sobre o significado do cômico” também observa sua característica medicinal: “poderíamos dizer que o remédio específico para a vaidade é o riso, e que o defeito essencialmente risível é a vaidade”.

Por que estou a falar de um livro mencionando outros? Porque para Amós Oz defende a literatura, a boa literatura, como forma de estimular a curiosidade, de nos abrir uma espécie de terceiro olho, de nos estimular em nossa aptidão para “imaginar a vida na pele” do outro, como forma de “traduzirmos nossas profundas diferenças
individuais no milagre das pontes construídas por palavras”.

Amós Oz está a falar do longilíneo conflito entre Israel e Palestina, mas certamente o que diz sobre obsessões e disputas pode nos fornecer uma receita para situações semelhantes. Afinal, quem aí não conhece um fanático?

Na dúvida vamos definir o fanático. Além de carecer de imaginação, ele é ruim de matemática, “só sabe contar até um, dois é uma cifra grande demais para ele”. Outro aspecto essencial é seu “desejo de forçar outras pessoas a mudar”. O fanático quer o mundo do jeito que ele acha que tem que ser e não está aberto a discussões.

Não se precipite em investir contra um fanático. “O fanatismo é fácil de pegar, é mais contagioso do que qualquer vírus”. Nós, humanos, gostamos de ideias que pareçam “mais verdadeiras que a verdade”, para emprestar conceito de Hannah Arendt. Viver o mundo rasgando uma divisão entre o eu e o resto, sendo eu o certo e o resto estúpido, é atitude nossa de longa data. Mudar isso exige muito esforço de amadurecimento, muitos tombos e muitos risos.

Amós Oz deixa-nos uma receita interessante contra o fanatismo: curiosidade, boa literatura e bom humor. E acrescenta uma frase que de tanto uso ficou meio batida: nenhum homem é uma ilha. O que Amós Oz complementa é que o homem é peninsular, parte dele voltado para o mar, parte dele agarrado ao continente. A que se refere a
metáfora do continente? À família, às tradições, à nossa história. Impossível se desgarrar do próprio passado, mas nem por isso devemos deixar de nos projetar para o futuro, o que se faz no presente.

Em tempos de assunto “vacina” vale trabalharmos também nessa imunização proposta por Amós Oz: “um senso de humor, a capacidade de imaginar o outro, a competência de reconhecer a qualidade peninsular de cada um de nós poderá ser pelo menos uma defesa parcial contra o gene do fanatismo que existe em todos nós”.

Então, que tal estimular sua curiosidade, pegar no par de mãos um bom livro e rir um pouco de si mesmo ou de si mesma? Lembre-se: “nada é tão sagrado que não mereça uma zombaria ocasional”.

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Carolina Rabello Padovani. Pós-doutoranda em Filosofia no Laboratório de Comportamento, Política e Mídia (Labô) da PUC-SP sob supervisão de Luiz Felipe Pondé. Pós-doutorado em Ciências pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Doutorado e Mestrado em Ciências pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Psicóloga, bacharel e licenciada em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Especialista em Neuropsicologia pelo Centro de Estudos Psico-Cirúrgicos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo (CEPSIC – HCFMUSP). Participante do Grupo de Pesquisa “Comportamento Político” do Laboratório de Comportamento, Política e Mídia (Labô) da PUC-SP. Escritora.