Caras leitoras e caros leitores,

 

A campanha No Corpo Certo nasceu para questionar o discurso “trans” e as políticas baseadas na ideia de “identidade de gênero” aplicadas à saúde, em especial a de crianças e adolescentes. Contudo, estas políticas impactaram diversos outros campos de nossas vidas, constituindo um verdadeiro processo de desmonte de direitos. A redefinição do que são homens e mulheres, meninos e meninas, fez retroceder conquistas importantes nossas como o direito à liberdade de expressão, de informação, de cátedra, à liberdade religiosa, ao pleno emprego, à orientação sexual e, também, os direitos de meninas e mulheres, os quais se baseiam no sexo biológico e não em sentimentos.

Lamentamos que o movimento de mulheres, assim como outros movimentos sociais, partidos e instituições públicas e privadas em regra, as tenha deixado, quanto a isso, órfãs. Que tenha sido, quase que totalmente, cooptado pelo lobby “trans”/”LGBTQIAP+”/”queer”. Que esteja em silêncio diante da destruição dos espaços separados por sexo, da redução da mulheridade a estereótipos e acessórios superficiais e do verdadeiro contágio social que está acontecendo atualmente entre as meninas, a ROGD (Rapid Onset Gender Dysphoria ou Disforia de Gênero de Início Repentino). Demos nossa contribuição: entre outras medidas, resgatamos a verdadeira história dessas políticas, explicitamos a diferença entre o atual lobby “LGBTQIAP+” e o que foi a luta pelo direito à orientação sexual e questionamos a invasão de homens trans-identificados nos esportes femininos, nos espaços lésbicos e nos demais espaços separados por sexo, uma conquista histórica nossa.

Precisamos reconhecer  o óbvio: que a realidade de que meninas e mulheres são seres humanos é incompatível com a ideia de que elas seriam uma “identidade de gênero” na cabeça de homens descontentes com sua condição. Ainda que em determinadas situações concretas seja possível encontrar um caminho do meio (como por exemplo a construção de um terceiro banheiro num colégio no qual estude um garoto que acredita ser uma garota ou vice-versa), na maioria das situações da vida cotidiana é preciso fazer uma escolha. Não é possível convivermos com definições de mulheres e homens tão diferentes: uma baseada na realidade, outra numa ficção; como costuma dizer a advogada norte-americana Kara Dansky, “ou sexo existe, ou ´trans´ existe”. Ou o critério definidor é objetivo, ou subjetivo, as abstrações continuamente bombardeadas nas universidades depois da colonização queer. Aceitar que seres humanos são sexualmente dimórficos, como qualquer outro mamífero, é reconhecer que eles têm uma característica que não pode ser mudada, que não pode ser trans-formada. 

Sei que é difícil ter a coragem de fazer uma escolha entre meninas e mulheres e o pequeno mas bem-financiado grupo de homens que declaram “nos ser”. Entendemos o medo, mas não há outro jeito: é preciso falar apesar do medo. Mulheres e meninas, inclusive as meninas brasileiras, estão pagando caro pela nossa covardia. E nós sabemos perfeitamente qual é a escolha que devemos fazer.

O artigo que se segue foi enviado por uma leitora que prefere ser nomeada apenas como “A.” e que é bacharel em Direito e traz uma provocação: porque o racismo, a homofobia e até a “transfobia” foram criminalizados no Brasil e em muitos países, mas não a misoginia? E é simbólico publicá-lo no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Que todas e todos nós lutemos pelos  Direitos Humanos da metade do planeta que nos gestou e deu à luz, os quais são o foco de uma organização com sede no Brasil  (aliás, #ProtegeSTF !) e da Declaração que redigiram e que subscrevemos. Em seu artigo 9º, a Declaração descreve o objetivo principal da No Corpo Certo: o fim dos procedimentos médicos nos corpos de crianças e adolescentes baseados em “identidade de gênero”.

Um abraço, um ótimo Natal e Ano-Novo e até o ano que vem.

 

Eugênia Rodrigues

Jornalista

Porta-voz da campanha No Corpo Certo

 

Misoginia: por um projeto de lei pedagógico-punitivo para a garantia dos direitos de meninas e mulheres

Por: “A”.

 

Introdução: o que é misoginia e como ela afeta a vida das meninas e mulheres

 

A palavra misoginia deriva do grego misogynia: a união da partícula miseó (que significa ódio) e de outra partícula, gyné (das quais derivam termos como vagem, vagina e ginecologia). Ela é, portanto, o ódio a meninas mulheres, ao sexo feminino. 

A misoginia se traduz de diversas maneiras. Na forma de preconceito, no repelir, depreciar, discriminar e excluir meninas e mulheres. Com comportamentos hostis, atribuindo privilégios ao sexo masculino e o colocando como o único paradigma de representação individual e coletiva. Com o pensamento do sexo masculino prevalecendo sobre o sexo feminino e a atribuição de estereótipos. Esse androcentrismo provocou e provoca danos muitas vezes irreversíveis; para o sociólogo Johnson (2000, p. 149), “a misoginia é uma atitude cultural de ódio às mulheres porque elas são femininas”. E complementa afirmando que:

Trata-se de uma parte fundamental do preconceito e ideologias sexistas e, como tal, constitui uma base importante para a opressão das mulheres em sociedades dominadas pelos homens. A misoginia se manifesta de várias maneiras diferentes, de piadas e pornografia à violência e ao autodesprezo que mulheres podem ser ensinadas a sentir em relação ao próprio corpo“.

Já o sociólogo Michael Flood (2007) definiu misoginia como

uma ideologia ou sistema de crença que tem acompanhado o  patriarcado ou sociedades dominadas pelo homem por milhares de anos e continua colocando mulheres em posições subordinadas com acesso limitado ao poder e a tomada de decisões”. 

Cícero relata que a misoginia era caracterizada pela ginofobia (medo das mulheres). Na mitologia, dizem que quem detinha o poder eram as deusas mulheres, que depois foram destronadas por deuses masculinos: “Entre essas mitologias está a sumeriana, em que primitivamente a deusa Siduri reinava num jardim de delícias e cujo poder foi usurpado por um deus solar.” (KRAMER E SPRENGER, p. 8-9, 2011). Na concepção monoteísta a figura de um deus masculino foi esculpido da seguinte forma:

Javé é deus único todo-poderoso, onipotente, e controla todos os seres humanos em todos os momentos de sua vida. Cria sozinho o mundo em sete dias, e no final, cria o homem. E só depois cria a mulher, assim mesmo a partir do homem. Mas graças à sedução da mulher, o homem cede a tentação da serpente e o casal é expulso do paraíso“. (KRAMER E SPRENGER, p. 9, 2011)

Analise a figura da mulher como deusa e o contraste entre o deus masculino e opressor:

Em primeiro lugar, ao contrário das culturas primitivas, Javé é deus único, centralizador, dita rígidas regras de comportamento cuja transgressão é sempre punida. Nas primitivas mitologias, ao contrário, a Grande Mãe é permissiva, amorosa e não-coercitiva. E como todos os mitos fundantes das grandes culturas tendem a sacralizar os seus principais valores, Javé representa bem a transformação do matricentrismo em patriarcado. (KRAMER E SPRENGER, p. 9, 2011)

Todo esse processo de violência e o medo do que o sexo feminino poderia fazer fez com que o sexo masculino vetasse poderes decisórios e fizesse com que elas introjetassem a inferioridade em relação aos homens, o que foi alcançado na maioria das vezes de forma arbitrária e violenta.

Vários autores e filósofos renomados foram misóginos. Como Aristóteles, que disse que somos “homens imperfeitos”. Na obra “História dos Animais” (2014, p. 75) Aristóteles afirma que:

Portanto, as mulheres seriam mais compassivas e prontas a chorar, mais invejosas e mais sentimentais e mais contenciosas. A fêmea também está mais sujeita à depressão do espírito e ao desespero do que os homens. Ela é também mais desavergonhada e falsa, mais prontamente enganada, e mais atenta às injúrias, mais ociosa e, em geral, menos excitável que o macho. Pelo contrário, o macho está mais disposto a ajudar e, como já foi dito, mais valente do que a fêmea“.

Em sua obra “Política” (2007, p. 61) Aristóteles assim se expressa: “Além disso, o macho tem sobre a mulher uma superioridade natural, e um é destinado por natureza ao comando, e o outro a ser comandado.” O filósofo grego ainda diz que as mulheres deveriam se casar mais tarde, porque assim diminuiriam sua licenciosidade, lançando a ideia que as mulheres deviam casar aos dezoito anos e os homens aos trinta e sete anos. O filósofo Sócrates cometeu a infelicidade de dizer que quem implorasse em um tribunal não era melhor que uma mulher. (ARISTÓTELES, 2007). Até mesmo o famoso teólogo Aurélio Agostinho de Hipona ou simplesmente Santo Agostinho considerava que as mulheres seriam seres inferiores: Ela, possuindo, sem dúvida, uma lama de igual natureza racional e de igual inteligência, está, quanto ao sexo, dependente do sexo masculino, assim como o apetite, de que nasce o ato, se subordina à inteligência para conceber da razão a facilidade em ordem ao bom procedimento”. (CONFISSÕES XIII, 2004, p. 32-47)

O renomado Pai da Psicanálise, Freud, escreveu: As mulheres representariam os interesses da família e da vida sexual; o trabalho cultural é sempre mais transformado em dever dos homens, ele lhes atribui tarefas sempre mais difíceis, obrigando-os a efetuar sublimações pulsionais, às quais as mulheres são menos aptas” (Freud, p. 124, 1976). E também que a mulher não pode ao mesmo tempo exercer uma atividade profissional e cuidar dos filhos“, concluindo que “as mulheres, como grupo, não ganham nada com o movimento feminista moderno” e que “de fato, as mulheres nada ganham estudando, e isso em nada melhora sua condição de mulher” (Freud, 220, 1976).

No período que vai do século XIV a XVIII, ocorreu um fenômeno escabroso e generalizado: foram quatro séculos dedicados à “caça às bruxas”. Na verdade, de torturas e mortes de mulheres que eram rotuladas de “bruxas” por motivos machistas, supersticiosos e fantasiosos, como seus conhecimentos, a habilidade de ter uma lavoura melhor, prover cuidados em saúde,  morar sozinha na floresta, se recusar a casar, ser quieta, falante, gostar de dançar, gargalhar, ter gatos ou outros animais, serem belas ou consideradas “feias” etc. Por esses motivos, eram tidas como feiticeiras perigosas e condenadas na maioria das vezes a morrer queimadas nas fogueiras.

A extensão da caça às bruxas é espantosa. No fim do século XV e no começo do século XVI, houve milhares e milhares de de execuções – usualmente eram queimadas vivas na fogueira – na Alemanha, Itália e em outros países. A partir do século XVI, o terror se espalhou por toda Europa, começando pela França e Inglaterra. Um escritor estimou o número de execuções em seiscentas por ano para certas cidades, uma média de duas por dia, ‘exceto aos domingos’. […] Outros cálculos levantados por Marylyn French, em seu citado livro, mostram que o número mínimo de mulheres queimadas vivas é de cem mil“. (KRAMER E SPRENGER, p. 13, 2011)

Um dos argumentos propostos em termos religiosos é de que a mulher deve ser submissa ao porque assim foi criada por Deus, forçando-as a aceitarem  a assimetria sexual, na qual se atribuía diferentes papéis para homens e mulheres. (LERNER, 2019). Argumentavam que pelo fato de à mulher ter sido atribuída por planejamento divino uma função biológica diferente da do homem; “Se Deus e a natureza criaram diferenças entre os sexos que, em consequência, determinaram a divisão sexual do trabalho, ninguém pode ser culpado pela desigualdade sexual e pela dominação masculina.” (LERNER, p. 43, 2019)

E, nesse segmento, a função da mulher era ser submissa e exercer sua capacidade reprodutiva de forma compulsória:

“[…] capacidade reprodutiva feminina e vê a maternidade como a maior meta na vida das mulheres, definindo, assim, como desviantes mulheres que não se tornam mães. Assim, vê a divisão sexual do trabalho com base em diferenças biológicas como justa e funcional“.

A explicação da assimetria sexual coloca as causas de submissão da mulher ao homem pelos fatores biológicos pertinentes aos homens como maior força física e maior agressividade levando-os a se tornarem caçadores e guerreiros que acumulavam riquezas. Porém essas premissas já foram refutadas:

Outra forma de refutação de teorias do homem-caçador envolveu contribuições essenciais e culturalmente inovadoras de mulheres para a criação da civilização, com a invenção da cestaria e da olaria, bem como o conhecimento e o desenvolvimento da horticultura. Elise Boulding demonstrou, em particular, que o mito do homem-caçador e sua perpetuação são criações socioculturais que servem à manutenção da supremacia e da hegemonia masculina“. (LERNER, p. 45, 2019)

Uma análise atenta sobre a Psicologia e a Psicanálise modernas mostra que elas ainda reforçam discursos ultrapassados:

O humano normal de Freud era macho; a fêmea era, de acordo com sua definição, um ser humano desviante sem pênis, cuja completa estrutura psicológica concentrava-se, segundo supunha, no esforço em compensar essa deficiência. Apesar de muitos aspectos da teoria freudiana se provarem úteis na construção da teoria feminista, foi a máxima de Freud de que, para mulheres, “anatomia é destino” que deu nova vida e força ao argumento de supremacia masculina”. (LERNER, p. 45, 2019).

Esse reforço que garante a supremacia da figura masculina foi extremamente tóxico para as mulheres, colocando-as em uma hierarquia de subordinação e submissão causticante abordadas assim:

A ´troca de mulheres´ é a primeira forma de comércio, na qual as mulheres são transformadas em mercadoria e “coisificadas”, ou seja, consideradas mais coisas do que seres humanos. A troca de mulheres, de acordo com Lévi-Strauss, marca o começo da subordinação das mulheres. Isso, por sua vez, reforça uma divisão sexual do trabalho que institui a dominação masculina“. (LERNER, p. 51, 2019)

Para combater a ideia do que Freud considerou como destino biológico da mulher, a autora Gerda Lerner afirma que:

A declaração de Freud que discute, em contexto diferente, de que a ´anatomia é destino´ para as mulheres, está errada, porque é desprovida do contexto histórico e projeta o passado distante no presente sem reconhecer as mudanças ocorridas ao longo do tempo. O que Freud deveria ter dito é que, para as mulheres, a anatomia já foi destino. Essa declaração é precisa e leva em consideração o contexto histórico“. (LERNER, p. 83-84, 2019)

No Brasil, a situação das mulheres no período colonial não foi diferente do que ocorria em outros continentes. Mulher era objeto, coisificada e propriedade primeiro do pai e depois do marido.

Anteriormente, não havia casamento e sim arranjos chamados de amasiamentos ou concubinatos. O casamento geralmente ocorria nas famílias mais abastadas. E as mulheres já nasciam com um destino: eram obrigadas a casar muito cedo ou ficavam com o título de “solteirona” e desta forma invisível aos olhos de todos. O homem jamais era infecundo, isso era apenas “destino” da mulher, o que agora sabemos ser uma falácia. A historiadora Mary del Priore relata que a situação da mulher era de total subserviência masculina: “A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo – é o marido que a tem. A submissão feminina fazia parte do contrato”. (p. 22, 2014). Durante a escravidão, os homens eram explorados pelos seus senhores no campo enquanto elas eram exploradas, também, nos serviços domésticos, sendo obrigadas a amamentar os filhos dos senhores e muitas vezes aliciadas ou estupradas pelos membros da família que a detinha como propriedade:

Os convites diretos para a fornicação eram feitos predominantemente às negras e pardas, fossem escravas ou forras. Afinal, a misoginia – ódio das mulheres – racista da sociedade colonial as classificava como fáceis, alvo naturais de investidas sexuais, com quem se podia ir direto ao assunto sem causar melindres. O ditado popular parecia se confirmar: “Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar”. (PRIORE, p. 36, 2014)

Já a vida da mulher branca casada girava em torno de cuidar do marido, da casa e muitas vezes criar os filhos do marido considerados “ilegítimos”.   Com a influência da Igreja, não era permitido o sexo antes do casamento, tampouco a poligamia por serem considerados comportamentos pecaminosos. E os pais, com o intuito de preservarem suas filhas como imaculadas para um casamento vantajoso, as enviavam muito cedo para um convento. Por sua vez, a mulher solteira que engravidasse fora do casamento era jogada pelo pai na rua e acabava indo para o caminho da prostituição para poder sobreviver; a pele branca não mudava o caráter de “escrava parcial” que ela passava a carregar. Mas havia, é claro, diferenças entre a mulher branca casada e a mulher branca que era prostituta. Segundo Burille (2010) algumas mulheres brancas casadas no Brasil colônia passaram a gozar de certo prestígio:

” […] na colônia, as mulheres brancas passam a ter papel fundamental na liderança social: de negócio, fundadoras de capelas, curadoras, administradoras de fazendas, líderes políticas locais, chefes de família e de política, tinham direito de heranças, seus maridos não podiam dispor da propriedade do casal sem seu consentimento, podiam pedir divórcio dentro dos cânones da Igreja“.

Quanto às prostitutas, seu destino era cruel e eram segregadas pela sociedade de maneira brutal:

As prostitutas, por sua vez, foram afastadas do convívio com a comunidade. Antes viviam como as outras mulheres, trabalhando em casa, cuidando dos filhos e dos pais desvalidos. Depois, sofreram dura perseguição. Mas isso não impediu que fossem procuradas pelos homens em busca do prazer e do divertimento vivamente desaconselhados dentro do lar“. (ALVES, 2016)

Outras mulheres castigadas por esse sistema machista e patriarcal eram as que optavam por não se casar (celibatárias) e ficavam com a pecha de solteironas. Seu maior pecado era não terem filhos, que o Estado e a Igreja incentivavam devido à necessidade de braços para a lavoura. (ALVES, 2016). Quanto ao sexo havia os ditames religiosos para a prática que controlava a vida dentro do casamento, expondo esse trecho:

Desordenado, aqui significa desmedido, incontrolável. Cópula carnal é cópula mesmo! Agora, já não fica tão difícil. Agora, já não fica tão difícil entender esse preceito moral estabelecido pelas autoridades da igreja católica. Poucos sabem que, sob influência do cristianismo, uma nova ética sexual se impôs dentro do sacramento. A regra era recusar o prazer”. (MARY DEL PRIORE, p. 28, 2014)

A religião além de condenar o prazer sexual condenava qualquer prática de planejamento familiar, detendo sobre os corpos da mulher controle absoluto:

Na época, vale lembrar, não existia nem ´camisinha´, nem pílula anticoncepcional. Na maior parte das vezes, usava-se uma técnica difundida na Europa: o coito interrompido, que a Igreja Católica condenava, como revela o trecho de um diálogo entre um confessando e o padre no confessionário: “Padre, várias vezes retraí-me, impedindo a concepção”. E a resposta ríspida do padre: ´Pois saiba Vossa Mercê que peca mortalmente cada vez que fizer isto; e, sua mulher consentiu nisto, fez o mesmo e é ré do mesmo pecado”. (MARY DEL PRIORE, p. 29, 2014)

Havia durante a época do século XVII do um cerceamento do sexo dentro do casamento e a própria Igreja desencorajava o lazer erótico saudável entre as pessoas. As vidas sexuais das pessoas eram reprimidas pela Igreja que só aceitava o sexo como forma de reprodução. Havia alguns poucos que rebelavam, a exemplo dos homossexuais, contudo a Igreja sempre vigilante, ameaçando, torturando e punindo ao ponto de queimar essas pessoas em fogueiras. (MARY DEL PRIORE, 2014)

Na sociedade colonial brasileira havia uma desigualdade em que era pego em adultério. Os homens adúlteros seguiam sua vida e as mulheres deles nada podia reclamar sobre a situação e caso os matassem recebia punição severa da lei. Já o marido traído que matasse a adúltera tinha respaldo da lei para não sofrer nenhuma punição, afinal era considerado como legítima defesa da honra. Essa concepção permaneceu séculos adentro aqui no Brasil em que maridos muitas vezes enciumados matavas as esposas e alegavam legítima defesa da honra e a lei os protegia. (MARY DEL PRIORE, 2014)

O culto à virgindade era proveniente da influência da Igreja católica, a fim de que a moça não “perdesse a honra”. Transgredir essa norma era grave, porém engravidar sem casar era gravíssimo. No crime de sedução, a mulher poderia ser defendida como vítima apenas quando houvesse violência masculina e se ela tivesse sucumbido ao prazer do sexo era considerada culpada. (MARY DEL PRIORE, 2014) Para ser considerado uma candidata ideal para o casamento a mulher deveria atender a requisitos machistas (MARY DEL PRIORE, p. 29, 2014) que até hoje ainda perduram em determinadas comunidades; ela deveria ser aquela que: “A que não criticava, que evitava comentários desfavoráveis, a que se vestisse sobriamente, a que limitasse a passeios quando marido estivesse ausente, a que não fosse muito vaidosa nem provocasse o ciúme do marido.” De um lado havia aquelas consideradas “moças de família” em que se preparavam para o casamento arranjado pela família e elas deveriam preservar sua virgindade, afinal se esperava casar uma moça pura e obediente. A noite de núpcias muitas vezes se revelava um verdadeiro estupro. Os casais faziam sexo vestidos, com a luz apagada e a mulher não tinha o direito de sentir nenhuma conexão sexual condenável pela Igreja. O contrário da “moça de família” era ser tachada de “a galinha, maçaneta, a piranha ou vassourinha”. (MARY DEL PRIORE, 2014)

O perigo era que as meninas eram coagidas a desempenhar esses papéis de gêneros ou teria que conformar com que vinha a seguir: ser tachada de solteirona, feia, inadequada e tantos outros adjetivos negativos para continuasse perpetuando opressão e misoginia. Dessa forma, o experimento era que se as meninas ficassem longe do intelecto e se preocupassem com o aspecto físico e outros apetrechos para agradar um homem a ponto de eles casarem com ela. (MCCENN, 2019)

A despeito de tudo isso, elas seguiram na luta, ainda que a resposta viesse através de acusações, agressões, prisões e até assassinatos.

 

Uma breve história da luta de meninas e mulheres por seus direitos no Ocidente

 

Em 1792, a feminista anglo-irlandesa Mary Wollstonecraft contestou o estereótipo da mulher não ser uma pessoa racional afirmando que: “Quem fez do homem o juiz exclusivo, pergunta. As mulheres, podem até mais fracas fisicamente, mas são capazes de ter pensamento racional quanto aos homens”. (MCCENN, 2019). Wollstonecraft descreve a mulher usada como um brinquedo ou chocalho dos homens e fez um paralelo entre o casamento como sustento e uma forma de prostituição e possível causa de sérios danos psicológicos (MCCENN, 2019). O que expõe Wollstonecraft é que mulheres eram ensinadas a cultuar sua aparência para agradar aos homens em detrimento da necessidade de realização pessoal e intelectual consignando que: “Moldadas por um estereótipo de gênero, as meninas eram levadas a explorar sua aparência, a fim de encontrar um homem que as sustentasse e protegesse” (MCCENN, 2019). Outras questões debatidas pelas feministas como o divórcio e os direitos reprodutivos. Na Grã-Bretanha as ativistas Caroline Norton e Bárbara Bodichon orquestraram ataques a leis que mantinham as mulheres, especialmente as casadas em um papel de subordinação quase hierárquico. E seus esforços resultaram no Ato das Causas Matrimoniais de 1857, forçando homens a provarem no tribunal o adultério das esposas, assim como as mulheres denunciarem os maridos por crueldade ou abandono e o direito de as mulheres casadas terem suas propriedades. (MCCENN, 2019) . Ademais, na Grã-Bretanha surge o movimento que destaca a falta de controle por parte das mulheres em relação ao sexo e a reprodução (MCCENN, 2019). A sufragista e ativista Matilde Gage acusou o governo dos Estados Unidos de tratarem as mulheres com desprezo, incluindo a forma tirana que era tratada pelos homens. Gage culpava o Estado e a Igreja pela subjugação das mulheres. Ela abordou a tradição do cristianismo de apoiar a subjugação feminina, controlando o casamento como instituição dominada por homens e que perseguia mulheres acusadas de bruxaria e pregando a inferioridade feminina, reforçando o patriarcado que privavam as mulheres de seus direitos legais e a expunha a abuso físico e sexual. Por sua vez, Margaret Sanger dizia que a mulher deve ter sua liberdade: a liberdade fundamental de escolher se vai ou não ser mãe (MCCENN, 2019). 

Os movimentos da segunda onda do feminismo levaram as mulheres a refletirem sobre o controle reprodutivos delas pelos homens, analisando as raízes das opressões e como buscar a conquista da liberdade e igualdade. Já em 1949, Simone de Beauvoir havia criado a célebre frase: “Não se nasce mulher, se torna-se mulher”. Essa frase foi cunhada na obra da autora chamada “O segundo sexo”. (MCCENN, 2019). “O segundo sexo” é uma exploração profunda e seus precedentes dos mitos, das pressões sociais e das experiências de vida das mulheres e chega a uma conclusão radical: ela declara que a condição de ser mulher ou a feminilidade é uma construção cultural, social e formada ao longo das gerações e que nessa construção mora as causas das opressões às mulheres. (MCCENN, 2019).  Beauvoir refuta que embora haja diferenças entre os dois sexos (homem e mulher) não há qualquer justificativa para a condição das mulheres como segunda classe e isso seria resultado do controle masculino sobre elas. E reconhece que os processos particulares de uma biologia feminina – puberdade, menstruação, gravidez e menopausa acabaram dando um destino determinado e inevitável para a mulher. Argumenta que os valores masculinos sempre dominam, subordinando às mulheres de maneira que toda história feminina tem sido determinada pelos homens e contesta o estado de submissão das mulheres (MCCENN, 2019). A autora francesa aborda as experiências vividas pelas mulheres da infância a idade adulta e coloca a sexualidade, o casamento, maternidade e a domesticação sob olhar microscópico filosófico e intelectual da cultura do patriarcado. E explica que até a idade de doze anos a menina é tão forte quantos os irmãos e mostra exatamente a mesma capacidade intelectual e demonstra com riqueza de detalhes como a menina é condicionada a adotar o que é apresentado a ela como feminilidade, ensinada a ser objeto em vez de sujeito para agradar aos outros, especialmente aos homens e renunciar à sua autonomia (MCCENN, 2019).

A feminista Germaine Greer confrontou a misoginia promovendo a tese de que as mulheres são efetivamente castradas social, sexual e culturalmente, vistas como objetos sexuais, especificamente para os homens, e que a sexualidade das mulheres está mal representada como passiva. As qualidades valorizadas nas mulheres são as dos castrados: timidez, langor e delicadezas (MCCENN, 2019). E reforça a tese que o amor foi tão pervertido que transformou em ódio, repugnância e desprezo dos homens pelas mulheres. Cita ataques criminosos, abuso doméstico, estupros coletivos e os muitos e variados insultos usados pelos homens para descrever as mulheres. E reivindica a libertação dos processos de uma sociedade machista para a conquista da liberdade da mulher em todos os aspectos (MCCENN, 2019).

A feminista norte-americana Kate Millett afirmou que a socialização ou o processo de adquirir comportamentos ensinados é tão eficiente dentro do patriarcado e aponta o poder deste se apoia na força sexual, o estupro, no qual agressão, ódio, desprezo e desejo de violar se combinam, em uma forma particularmente machista e misógina do patriarcado. (MCCENN, 2019) O estupro possui muitos mitos que são desmistificados. A verdade é que os homens para exercer poder e domínio sobre as mulheres é motivado pela violência e a cultura do silêncio na ocorrência do estupro. A pessoas ficam assustadas ao falar sobre o assunto e é mais provável o estupro ser cometido por alguém conhecido da vítima (MCCENN, 2019). Susane Brownmiller diz que o estupro se tornou não apenas uma prerrogativa masculina, mas uma arma de força contra a mulher; é o agente principal da vontade dele e do medo dela. A autora Andrea Dworkkin disse que a igualdade não pode coexistir com um estupro. (MCCENN, 2019) Para a autora Shulamith Firestone as mulheres precisam se construir em uma revolução que as retire desse estado de subjugação que a sociedade patriarcal a inseriu e fora desse domínio masculino cruel, assim referendado:

Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma luta sangrenta e sem esperança? Entretanto, pela primeira vez em alguns países, as pré-condições para a revolução feminista existem – na verdade, a situação começa a exigir essa revolução. As primeiras mulheres estão conseguindo escaparão massacre, e, inseguras e vacilantes, começam a descobrir-se umas às outras. Seu primeiro passo é uma observação cuidadosa, em conjunto, para ressenbilizar uma consciência partida. Isto é penoso” (SHULAMITH, p. 11-12, 1976).

A partir da releitura do século XVII, Shulamith (1976) denuncia um espaço em que a mulher não era nada mais que propriedade de homem e negado o direito de ter direitos. Em que elas não tinham nenhum status civil diante da lei, inúteis depois do casamento ou caso não se casasse era compelida a aceitar como legalmente menores, não podia assinar testamento e nem ter a custódia dos filhos depois do divórcio. As mulheres não podiam aprender ler e muito menos serem admitidas em universidades; as mais privilegiadas proviam-se do conhecimento de bordado, pintura chinesa e da arte do cravo e sem nenhuma voz política. A feminista atesta o engodo do relacionamento entre mulheres “emancipadas” e homens como algo elevado:

As mulheres ´emancipadas´ descobriram que a honestidade, a generosidade, a camaradagem dos homens era uma mentira. Os homens todos tinham muito prazer em usá-las, e depois dispensá-las, em nome da verdadeira amizade. (´Eu te respeito muito e gosto de muito de você, mas sejamos razoáveis…´). As mulheres ´emancipadas´ descobriram que os homens estavam longe de ser os ´caras legais a quem elas gostariam de equiparar´”. (SHULAMITH, p. 11-12, 1976)

Para Perrot, citada por Rachel Soihet em seu artigo “História, mulheres, gênero: contribuições para um debate (1997, p. 100) a História das mulheres foi marcada por violências diversas ao logo de sua existência, contudo isso fez emergir uma imensa vontade rebelde e revolucionária de atingir os objetivos:

Por outro lado, em oposição à história ´miserabilista´(Perrot, 1987) — na qual se sucederam ´mulheres espancadas, enganadas, humilhadas, violentadas, sub-remuneradas, abandonadas, loucas e enfermas… — emergiu a mulher rebelde. Viva e ativa, sempre tramando, imaginando mil astúcias para burlar as proibições, a fim de atingir seus propósitos“.

O termo “gênero” foi bastante utilizado por feministas norte-americanas a fim de demarcar que reconhecer as diferenças baseadas no sexo não significa determinismo biológico. Não significa, de modo algum, reforçar o lugar do sexo feminino como objeto fraco, débil, inferiorizado, entre outros, dentro das diversas relações em sociedade. (AGUIAR, 1997). Nessa concepção, o gênero se diferenciava do sexo porque o uso do termo sexo seria para relacionar na espécie humana a fêmea e o macho e o gênero seria o termo ligado às construções sociais, culturais, psicológicas que se impõem sobre essas diferenças biológicas, (AGUIAR, 1997)

A feminista negra Audre Lorde discorre sobre o papel do homem negro com relação a opressão sofrida pela mulher negra:

Cada vez mais, apesar da oposição, as mulheres negras estão se unindo numa tentativa de explorar e modificar aquelas manifestações da sociedade que nos fazem sofrer uma opressão diferente de que sofrem os homens negros. E isso não é uma ameaça para os homens negros. A não ser aqueles que optam por reproduzir as práticas que oprimem as mulheres. Por exemplo, nenhum homem negro jamais foi forçado a ter filhos que não desejava ou não podia sustentar. A esterilização forçada e a impossibilidade de realizar abortos são ferramentas de opressão de mulheres negras, assim como o estupro” (2020, p. 59).

Audre também faz uma alerta sobre a difícil relação entre mulheres negras lésbicas e homens negros que as considera falsas ameaças:

As lésbicas são, hoje, usadas como isca de uma falsa ameaça na comunidade negra, numa manobra cuja intenção é distrair da verdadeira face do racismo/machismo. Mulheres negras que compartilham laços estreitos entre si não são inimigas de homens negros”. (2020, p. 59)

Em contrapartida, com as ações machistas/misóginas que os homens negros apreenderam ao longo da vida, é necessário a primazia da luta feminista:

Feministas negras falam como mulheres porque somos mulheres e não precisamos que outros falem por nós. […] Ao menos as feministas negras e outras mulheres negras começamos esse diálogo necessário, por mais amargas que sejam nossas palavras. Ao menos não estamos ceifando nossos irmãos nas ruas, nem os espancando até a morte com martelos. Ainda. Nós reconhecemos as falácias das soluções separatistas. (2020, p. 76)

Lorde, em sua obra “Irmã Outsider” (2020), debate sobre as contradições de ser mãe de um menino e a educação dada a ele, a fim de evitar que se tornasse misógino:

[…] enquanto eu me empenhava para aceitar a inevitável e iminente masculinidade de meu filho na pré-puberdade. Meu menino não se apenas se tornaria um homem fisicamente, ele poderia também agir como um. Essa percepção se tornou uma grande crise para mim, num contexto em que praticamente todas as mães lésbicas que eu conhecia (que também era brancas, o que percebi posteriormente) ou insistiam que seus filhos ´andróginos´ continuariam daquela maneira, que não se tornariam homens machistas/misóginos. (LORDE, 2020, p. 13)

E conta suas perspectivas em criar um filho em que ela não reproduza a toxidade masculina:

Desejo criar um homem negro que não vai se acomodar e nem vai ser destruído pelas corrupções chamadas de ´poder´ pelos patriarcas brancos, que querem a destruição dele com a mesma certeza que querem a minha. Desejo criar um homem negro que vai reconhecer que os verdadeiros objetos de sua hostilidade não são as mulheres, mas sim os elementos de uma estrutura que a programou para temer e desprezar as mulheres, assim como sua própria identidade negra”. (LORDE, 2020, p. 76) 

Não podemos esquecer o que houve nas guerras recentes, como em Ruanda, Bósnia, Congo e Sudão. O estupro foi usando como instrumento de guerra para massacrar e humilhar as mulheres. Nessas guerras homens eram mortes: mulheres primeiramente eram estupradas de todas as maneiras e só depois mortas.

Não somos propriedade de ninguém. É importante pontuar que a escritora e feminista francesa Simone Beauvoir usou a palavra sexo em vez de gênero e que a simples leitura do famoso parágrafo em que ela diz que “não se nasce mulher, torna-se” ela deixa claro que está falando de fêmeas humanas e não de travestis. O “ser mulher” é um processo em que a mulher reconhece sua materialidade do seu sexo e luta contra a socialização dele. As feministas norte-americanas que escolheram usar o termo gênero estavam inseridas num debate que reconhecia o sexo feminino; de maneira alguma se viam enquanto uma “identidade de gênero”. As que adotaram o termo o utilizavam enquanto algo negativo, enquanto atribuição datada de papéis sexuais misóginos. O que elas queriam deixar evidentes era como em toda História da humanidade tentou moldar as mulheres como um sexo somente destinado a uma finalidade que satisfizesse a uma sociedade cunhada pelo sistema patriarcal em que o homem era o protagonista e a mulher nada mais que um objeto usado para atender aos propósitos desse sistema dominante. Esses papéis de gêneros sempre foram questionadas pelas feministas.

Temos um longo caminho pela frente. Mesmo homens que supostamente apoiariam a nossa causa expressam cotidianamente desprezo para com o que somos e com nossos limites. Recentemente, um Youtuber que faz uma “drag queen” e se coloca como progressista ridicularizou uma professora crítica à linguagem neutra dizendo que ela “não sabia usar direito um blush”. Também dentro dos que se dizem “apoiadores” estão homens que se autoidentificam como “mulheres trans lésbicas” e exigem acesso aos corpos delas; há também os que expulsaram indiretamente dos partidos as filiadas críticas à legalização dos bordéis. 

E o que fazer concretamente contra esse ódio que avilta, agride, violenta e mata meninas e mulheres?

 

Conquistas legais de meninas e mulheres no Brasil

 

Foram anos e anos de mortandade e todo tipo de violência. Mas apenas com a força das leis internacionais e a fibra de uma mulher foi criada a primeira lei de combate à violência doméstica e familiar: Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Também é de fundamental importância o Decreto 4.372/2002, que promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) de 1979 e revoga o Decreto n.  89.460, de 20 de março de 1984”. Dispõe seu Artigo 1º o seguinte: 

Para os fins da presente Convenção, a expressão ´discriminação contra a mulher´  significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo“. (grifos nossos).

A partir de 2017 e 2018, sendo levado a público que há homens que ejaculam em mulheres no transporte público, houve uma intensa indignação contra a sanção branda para esse delito, o qual era punido como uma mera contravenção penal. A revolta em todo país fez com que Legislativo coibisse essa prática de forma mais severa, resultando na aprovação da Lei 13.718/2018. Ela criou o crime de importunação sexual caracterizada pelo Art. 215-A do Código Penal, que pune com reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos se o ato não constituir crime mais grave. Ficou consignado na lei o seguinte:

 § 5º  As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do

consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

Na mesma lei, também foi criado os crimes de estupro coletivo e estupro corretivo, além do artigo mencionado abaixo:

Art. 218-C.  Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. Aumento de pena § 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação“. (BRASIL, 2021)

Em 2018, também foi sancionada a Lei 13.772/2018, que entre outras modificações criou o Art. 216-B do Código Penal: registro não autorizado da intimidade sexual. Tanto o Art. 218-C e o 216-B guardam certa relação com o aumento de moléstias psiquiátricas ou suicídio cometidos por adolescentes e mulheres ao ter vazadas fotos íntimas que alguém tivera acesso sem seu consentimento. São vários casos em que os agressores usam algo íntimo que teve acesso das vítimas com o fim de manipulá-la, ridicularizá-la ou praticar vingança, somente como forma de mantê-las ao seu lado ou de controlá-las.

A Lei 14.132/2021 criou o tipo penal de “stalking” (perseguição) inserido no Art. 147-A do Código Penal, sendo apenado até a metade se o crime é cometido contra a mulher na condição do sexo feminino. Demorou muito para o crime de perseguição enfim fosse considerado crime no Brasil. Em outros continentes como a Europa, Oceania e Américas esse crime foi instituído já muitos anos. Um dos primeiros países a criminalizar a perseguição foi Estados Unidos em razão da perseguição e depois no assassinato da atriz Rebecca Schaeffer, fato ocorrido no Estado da Califórnia. Nos Estados Unidos, como se trata de um país em que os Estados- membros possuem soberania, existem legislações penais no âmbito municipal, estadual e federal sobre o “stalking”. Como se trata de um país com um sistema “Commom Law” isso é possível, não se esquecendo que o Brasil adota o sistema “civil law” (romano-germânico) e possui matérias que, pela constitucionalidade, são exclusivas de um ente federativo.

A Lei 14.188/2021 modificou a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher (Art. 147-B do Código Penal). A lesão corporal foi apenada com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).

A Lei nº 14.192/2021 combate a violência política contra as mulheres.

O Projeto de Lei 5096/20, que protege vítimas de crimes sexuais de atos contra sua integridade durante o processo, conhecido como Lei Mari Ferrer, foi aprovado no Senado, sendo sancionada em novembro de 2021: Lei 14.245/21.

Existem outros projetos tramitando em relação às mulheres, todavia acreditamos que algumas alterações trazidas pelas legislações trouxeram grandes prejuízos para as vítimas, a exemplo do crime de atentado violento ao pudor, que foi suprimido restando apenas o crime de estupro, com a mesma pena que havia antes. E existe muito mais a ser mudado, não apenas no cunho punitivo, mas sim no seio da própria sociedade de modo pedagógico, efetivo e eficaz.

 

O reconhecimento do “direito à identidade de gênero” enquanto um retrocessos nos direitos de meninas e mulheres

 

A Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão nº 26 proposta junto ao Supremo Tribuna Federal visava a punir atos de discriminação em razão da orientação sexual ou da “identidade de gênero” por mora constitucional do Congresso Nacional, além das “condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989”. Em 13-06-2019, foram reconhecidas as condutas de homofobia e “transfobia” e enquadradas na Lei de Racismo. 

Penso que a homofobia deve constar como injúria qualificada, havendo um  aumento de pena para os crimes na forma tentada ou consumada do homicídio e na lesão corporal grave ou gravíssima em razão do estabelecido nas circunstâncias da injúria qualificada. Não se admite viver em uma sociedade que marginaliza, discrimina, agride ou mata lésbicas, gays ou bissexuais.

Contudo, respeitosamente, discordo da decisão do STF abranger “identidade de gênero”. A uma, porque orientação sexual é um fato e uma característica relativamente objetiva, ao contrário de “identidade de gênero”, que é quando muito uma suposição. Como pode alguém adivinhar a “identidade de gênero” de alguém? A duas, porque se contradizem – uma lésbica recusar a entrada de um homem que se diga uma “lésbica” num grupo exclusivo para elas poderá ser acusada de “transfobia”, quando na verdade é a invasão dele, sua insistência em violar os limites delas, que deveria configurar lesbofobia. A três, porque, a depender da interpretação do que seria “discriminação por ´identidade de gênero´”, cidadãos e cidadãs brasileiras podem ser criminalizados simplesmente por reconhecerem a imutabilidade do sexo, como é o caso do segurança José Rui de Góis, condenado por simplesmente barrar a entrada de um travesti no banheiro feminino de um shopping de Maceió., 

Contudo, o reconhecimento da Suprema Corte da existência de “transfobia” trouxe grandes problemáticas para a luta, espaços e vivências das meninas e mulheres. Ultimamente, há quem chame meninas e mulheres de “pessoas com útero”, “portadoras de vaginas” e ou lhes imponha o rótulo de “cisgêneras”. Enquanto isso, insistir na definição de mulher baseada no sexo é colocado como “biologizante” e quem fala é acusada de “TERF” e “trans-excludente”.

Não olvidamos de esquecer que existe um Estatuto da Criança e do Adolescente que os protege, assim como leis que protegem mulheres na condição do sexo, sejam internacionais ou nacionais. Não há nada de errado com nossa biologia, tampouco falar sobre ela: apenas queremos nossos espaços, nossas pautas e vivências sejam respeitadas de acordo com nossas crenças, valores e decisões, sem que isso nos prejudique, provoque ameaças, regras de controle e comportamentos, cause danos, entre outros. Mulher não é subcategoria para ser tratada como “cis” ou “cisgênero”, somos mulheres; uma classe política que não pode ter seus direitos suprimidos em razão dos quereres de certos indivíduos. Se uma mulher não aceita dividir espaços ou a fazer algo que ela não queira com relação à autopercepção do outro é imediatamente atacada com a pecha desonesta de “transfobia” e outros adjetivos repletos de misoginia e ódio. São ameaças e agressões ocorrendo em relação a essa questão. Não “odiamos” homens e mulheres que se autodeclarem “transgêneros”, apenas temos o direito legítimo de expressar nossos pensamentos e de ocupar espaços de acordo com materialidade do sexo. Expressar nossos pensamentos se tornou algo parecido como o que ocorreu a partir do Século XV, em que caçavam as mulheres como bruxas más que deviam morrer de forma cruel: e foram milhares atiradas vivas nas fogueiras. E mais: obrigar mulheres a se ressignificarem com base na autopercepção masculina é, precisamente, o que combatemos ao longo dos séculos. Se o Estado reconhece a existência de algo chamado “identidade de gênero”, que o faça enquanto mera crença individual sexista. E ele tem que reconhecer que a realidade, os espaços e as lutas das mulheres são coisas completamente distintas e que devem ser priorizadas. Que a Justiça, o Estado, os políticos sejam responsáveis pela criação dos espaços das pessoas que se autodeclaram como possuidoras de “identidade de gênero” “incongruente” e parem com a destruição dos espaços das meninas e mulheres. 

 

Pela propositura de um projeto de lei pedagógico que tipifique a misoginia: a discriminação com base no sexo biológico

 

Diante de toda história de opressão, violência e morte geradas pela misoginia, há uma História contínua, incessante e dialeticamente propulsora de mudanças. Não há mais como conviver com as estatísticas que dilaceram as mulheres e meninas em vários âmbitos, ainda mais com o avanço da tecnologia. Certo é que não podemos conviver com uma sociedade que continua reproduzindo comportamentos como a atribuição de estereótipos datados, agressões, estupros e inúmeras e outras violações e por final a morte de meninas e mulheres. O correto para meninas e mulheres é viver em um ambiente que as respeite em seus direitos, sua liberdade, intimidade, suas crenças, privacidade e individualidade como sujeito da dignidade da pessoa humana – protagonistas da História da humanidade. 

A Lei 13.642/2018 se deu a atribuição à Polícia Federal para apuração de crimes relacionados a misoginia praticados pela rede mundial de computadores; contudo não estabeleceu um tipo penal (crime) específico que caracterize a misoginia, tanto pela forma configurada pelo meio real como por intermédio do virtual. 

Acredito que devemos ir além: o crime de misoginia deva ser instituído no Brasil. Por que pessoas negras, gays e até mesmo indivíduos que acreditam pertencer ao sexo oposto conseguiram ver criminalizadas as condutas contra si, mas não nós, metade do país? A misoginia deve ser colocada entre crimes crimes comuns, que são de competência da Justiça Comum, e também nos de competência militar, no caso de prática por membros dessas instituições. Penso também que os crimes praticados por ação ou omissão contra garotas ou adultas por agentes públicos devam ter aumento de pena. Sabemos que a política criminal não resolve por si só preconceitos profundamente arraigados, mas são um começo.

Não acredito que dar ao delito um caráter punitivo possa ser a solução para as mudanças. A misoginia está profundamente enraizada em nós, mais até que outras opressões, e a sociedade se modificará quando seus membros forem estimulados a mudar comportamentos que prejudicam ou machucam o outro. Esta proposta ainda está sendo pensada, mas desde já adianto minha posição por penas de prestação de serviços à comunidade e palestras. No caso de empresas de maior  porte, poderíamos pensar em penas pecuniárias.

Fato é que criminalizar a misoginia entrará em conflito com a criminalização da “transfobia”. Afinal, a ideologia “transgênera” se baseia em enunciar estereótipos ultrapassados sobre homens e mulheres, é imposta com aberta violência psicológica e política contra nós e destrói os direitos que conquistamos. Por óbvio, esse conflito deverá ser resolvido em prol da realidade material do que são homens e mulheres.

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BRASIL. Decreto 4.372, de 11 de setembro de 2002. Promulga a Convenção

sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a

Mulher, de 1979, e revoga o Decreto n o  89.460, de 20 de março de 1984.

Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4372.htm>

Acesso em: 02 nov 2021.

 

________. Lei 13.642, de 3 de abril de 2018.

Altera a Lei nº 10.446, de 8 de maio de 2002, para acrescentar atribuição à

Polícia Federal no que concerne à investigação de crimes praticados por

meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo

misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às

mulheres. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2018/lei/L13642.htm> Acesso em: 03 nov 2021.

 

________. Lei 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº

2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes

de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar

pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a

liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer

causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de

aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga

dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das

Contravenções Penais). Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm>

Acesso em: 03 nov 2021.

 

________.Lei 13.772, de 19 de dezembro de 2018.

Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e o

Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para

reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência

 

doméstica e familiar e para criminalizar o registro não autorizado de

conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter

íntimo e privado. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13772.htm>

Acesso em: 03 nov 2021.

 

________. Lei 14.132, de 31 de março de 2021.

Acrescenta o art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940

(Código Penal), para prever o crime de perseguição; e revoga o art. 65 do

Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções

Penais). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2018/lei/L13772.htm> Acesso em: 03 nov 2021.

 

_________. Lei 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de

cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das

medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a

mulher previstas na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da

Penha), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código

Penal), em todo o território nacional; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7

de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar a modalidade da

pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da

condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência

psicológica contra a mulher. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13772.htm>

Acesso em: 03 nov 2021.

 

________. Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão 26.

Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515

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