Cara leitora ou caro leitor,

o texto que se segue é muito especial: um relato autobiográfico de uma mãe brasileira sobre o processo vivido por sua filha de apenas 10 anos de idade. Formulei, ao final, algumas perguntas para você sobre o caso e espero que você possa respondê-las, seja para nós ou para si mesma (o). Melhor ainda se elas te estimularem a dialogar com outras pessoas próximas sobre o que está acontecendo no Brasil e no mundo.

Queria contar também que no próximo sábado (12 de março) haverá um evento sobre destransição organizado pela Genspect, rede internacional de famílias, profissionais de saúde e jornalistas com um olhar crítico à medicina baseada em “gênero”. Todas as informações de que você precisa estão neste link; se não puder ir, vale a pena ler os materiais produzidos e segui-los nas redes sociais. Quanto ao I Fórum Nacional Mulher e Infância, no qual falarei na sexta-feira (11 de março), as inscrições estão esgotadas, mas verificarei se posso publicar a transcrição da minha fala no nosso site.

Neste dia Oito de Março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, pedimos atenção para o mundo que deixamos para as nossas meninas (que serão um dia mulheres, ainda que não se reconheçam como tais). Um mundo no qual um pequeno mas influente grupo de adultos diz a elas, diariamente, que a melhor ou até mesmo a única forma de navegarem pela conturbada mas necessária fase da adolescência é através da disassociação. Um mundo no qual, depois da internet, é muito difícil, senão impossível, proteger a elas e também aos meninos. Exemplificando, uma garota de 10 anos que buscasse informações sobre o tema no popular aplicativo TikTok, no qual me vi obrigada a fazer um perfil, encontraria resultados como este link que printamos abaixo e no qual se lê: “Descubra vídeos populares sobre trans ftm tips for school”. “FtM” significa “female to male” ou “de mulher para homem”, nomenclatura em inglês criada por médicos que, como todos nós, sabem muito bem que seres humanos não mudam de sexo. “Tips for school” significa “dicas para escolas” e “Welcome children”, “bem-vindas, crianças”.

Abraços e até o próximo texto (spoiler: dialoga com este relato).

Eugênia Rodrigues

Jornalista

Porta-voz da campanha No Corpo Certo

“Minha filha se declarou ´trans´: como lidei com isso”

 

Às mães e pais dos jovens do século XXI, escrevo esse texto mais como uma forma de relatar uma experiência e acrescento que exprime a minha interpretação pessoal sobre fatos ocorridos na minha família e não possui a intenção de comparar casos com precedentes distintos – que, sei, existem. Portanto são sentimentos e reflexões de uma mãe, que às vezes acertou e muitas vezes errou, na tentativa de melhor auxiliar a sua filha na busca dela mesma.

Minha filha cresceu numa infância sem muitas questões profundas, muito segura, com facilidade de fazer amizade com pessoas de diferentes idades. Tinha sim uma certa dificuldade de se concentrar na escola, de tanto que gostava de conversar com os amigos e com os professores, sem contar as escapadas que dava ao banheiro para ficar na frente do espelho admirando a si mesma, em seu estilo alegre, descontraído e desafiador. Sempre doce, acolhia os alunos novos da escola e era bem convicta sobre aquilo que acreditava ser bom ou ruim em seu mundo.

Durante a pandemia, nos mudamos de cidade 3 vezes. Ela, com 10 anos, fazia aulas online em uma escola que acabara de ingressar. Sem irmãos ou crianças conhecidas ao redor, ficava horas em conversas online em grupos com os amigos, e com os amigos dos amigos, e com os amigos dos amigos dos amigos… muitas crianças que ela mal teve tempo de conhecer e outras que ela não conhecia mesmo. Víamos que ela se divertia conversando, dava risada e participava ativamente das discussões. Preventivamente, falávamos sempre sobre os riscos da internet e quando perguntávamos se tinha algo errado ou alguém suspeito, ela sempre dizia que não. E aí nós tivemos a primeira lição: crianças não são peritas em decifrar crimes cibernéticos ou sacar situações abusivas de pessoas mal-intencionadas se passando por crianças felizes na internet. Nós, mães, pais e tutores, precisamos vigiar ativamente os ambientes das crianças, porque muitas vezes elas não têm maturidade para sacar uma situação de risco ou muitas vezes não compreendem de que forma algo como a internet pode fazer mal a eles.

Pois então, tudo parecia sob controle na nossa quarentena quando, lá por meados de abril de 2021, a nossa filha manifestou seu desejo de ser um “menino trans”, e de cara me perguntou se eu deixaria. Sem muito questionar, até porque eu achava que tudo ia muito bem, eu obviamente disse sim, que se era esse o caminho, eu estava quase pronta para ser a mãe desta criança corajosa e amada, desbravando os desafios de ser um ser humano de seu tempo, o qual eu talvez não compreendesse jamais, por ser de uma geração tão distinta. Me bateu um medo danado, mas, assim como algumas vezes correr é em vão, assim eu me sentia, ciente de que não dava para fugir. Conversamos que isso aconteceria com tempo e que iríamos experimentando juntos aos poucos, sob supervisão. Como ela ficava o dia todo em casa e não tocava muito no assunto, achamos que não era um assunto tão relevante e que talvez ela estivesse indo com calma mesmo.

Algumas vezes surgiu o assunto e, se indagássemos o porquê de achar que seria melhor ser menino, ela respondia prontamente: “Não vejo vantagem em ser mulher, elas menstruam, têm cólica, TPM, as roupas são desconfortáveis, tem sempre que tomar cuidado nos lugares que frequentam, são assediadas nas ruas, muitas vezes violentadas, precisam estar sempre bonitas, arrumadas, não podem fazer o que querem… quais são as vantagens em ser assim?” E, com tanto argumento convincente, fomos vendo-a se transformar, no jeito de se vestir, de andar, no corte do cabelo… Ao mesmo tempo que grandes transformações de outro tipo aconteciam no seu corpo e quase nada restava de seu aspecto físico infantil. Nessa época, passou a usar roupas do pai e, como estávamos todos escondidos em casa, achávamos que tudo era um misto de corpo novo, roupas confortáveis e um pouco dessa ideia que a internet dá de sermos qualquer coisa que quisermos.

Mas, e ainda bem que a verdade um dia escancara, olhando um dia em seu celular, descobri um grupo de conversa num aplicativo chamado Discord onde um “dos amigos dos amigos” havia colocado um robô que disparava uma centena de imagens de violência pornográfica por dia, todas em formato de mangá, o que chamam de “Hentay meno”. E não eram cenas de sexo não, eram cenas de mulheres ou homens sendo violentadas(os) sexualmente, das piores maneiras, que eu nem poderia descrever aqui. Os abusadores sempre com expressões de divertimento e suas vítimas sempre com feições de profundo prazer, enquanto seus parceiros as/os dilaceravam. Uma overdose de terror que não tinha fim. Nesta ocasião também tomei conhecimento de que ela já havia se declarado um “menino trans” para os amigos e mudado seu nome nas redes sociais para Akira. Todos a respeitavam, admiravam e ouviam atentos o seu relato de que era uma criança extremamente feliz, porque sua família apoiava sua “trans”formação. Aos olhos dos amigos, pareciam dias muito felizes para alguém que podia escolher quem gostaria de ser!

Conversamos sobre o assunto, muito consternados, com muito cuidado, demonstrando profunda preocupação por tudo o que havíamos descoberto, mas também com muito respeito e compreensão pelos momentos difíceis de isolamento que ela vinha passando. Quando perguntávamos: “Por que escondeu o grupo de pornografia de nós? Por que continuou no grupo? Por que não nos informou sobre o Akira?” Ela então dizia: “Porque eu tinha medo de que vocês me proibissem de ter amigos… Porque se eu perco esses amigos, eu não tenho mais ninguém…”

De fato, ela perdeu os amigos, os grupos, as conversas. Não víamos outro caminho que não fosse restringir o acesso dela à internet o quanto pudéssemos. Ela se resguardou. Em seu profundo silêncio e sua frágil simpatia, sobrevivia… E ainda que tivéssemos tentado dizer a ela que estávamos fazendo isso para a sua segurança e não para a sua punição, ainda assim ela se sentiu culpada, errada e sem conserto. Sabíamos de seu sofrimento quando fazíamos reunião com a psicóloga e ela nos relatava tamanha dor pela qual nossa filha vinha passando em silêncio.

Quando surgia alguma oportunidade de conversar com alguma criança, víamos que seus assuntos eram sempre com grande teor de sexualidade, cheia de perguntas ansiosas para que as crianças dissessem seus pronomes, gêneros, sexualidade, fluido, bi, agênero, pan… uma infinidade de classificações… Seguia insaciável em busca de uma namorada, qualquer uma, mesmo que não conhecesse presencialmente, mesmo que ela nem mesmo gostasse da pessoa. Mantinha uma carência preocupante, mas que não conseguíamos muito entender. Se questionássemos o porquê da importância e da frequência desses assuntos, ela respondia: “Porque sou quebrada, errada e não tenho conserto”. Em meio a um mar de lágrimas, algumas vezes comentou: “Queria que existisse alguém nesse mundo que fosse capaz de me amar muito muito!”

Foram dias difíceis, amigas e amigos. Me sentia pilotando um avião sem nunca ter feito sequer uma aula de pilotagem, sem saber de onde vinha e para onde estava indo.

Conversando com uma amiga, professora do Ensino Fundamental, tomei conhecimento de que havia um aumento significativo de casos de “crianças trans” não só no Brasil como em outros países. E então eu mesma parei para refletir que conhecia alguns casos entre filhos de amigos, filhos de conhecidos e algumas crianças da escola. Compreendi nessa conversa que o assunto merecia muita atenção, uma vez que os desdobramentos da “mudança de gênero” poderiam implicar em hormônios para a vida inteira e cirurgias plásticas irreversíveis. Dentro desta nova perspectiva, conversamos com nossa filha em casa e explicamos as consequências de saúde que poderia ter em tomar hormônios durante muito tempo ou se submeter a cirurgias. Falamos sobre disforia de gênero, sobre decidir coisas enquanto sua personalidade ainda está em formação e ela nos disse que, por hora, se sentia bem se autointitulando “do gênero fluido”. Ainda que fosse “um menino” cem por cento do tempo.

E depois de muito tempo, muita conversa, escuta e apoio ela nos revelou que uma das crianças de seus grupos de Discord (aqueles lá do mês de abril) era uma “criança trans”, que trazia um discurso extremamente feliz e satisfeito, mais feliz ainda porque seus pais a apoiavam. Portanto, já havia escolhido um novo nome, um novo look e tinha uma vida incrível esperando por ela lá fora! E então percebi que, da mesma forma, a nossa filha vinha fazendo.

E então hoje eu penso: para uma criança enjaulada dentro de casa há mais de um ano, sem amigos, sem irmãos, sem perspectiva de encontrar gente da sua idade, ouvir um relato de alguém que jura que existe uma vida lá fora bem melhor do que essa, com novo nome, novas roupas, novo corte de cabelo, não te parece a luz no fim do túnel? A mim, parece! Mas, talvez essa seja uma das muitas perguntas as quais eu jamais terei a resposta, então sigamos com o barco.

Em agosto do mesmo ano, ela voltou às aulas presenciais, mais uma vez numa escola nova, numa cidade nova. Contudo, estávamos animados e aliviados com a ideia de ela poder ver gente novamente, conviver, brincar, gritar!! E então, aquilo que parecia ser o fim do sofrimento trouxe a ela desafios e inseguranças ainda maiores. Não sei dizer ao certo quais foram as principais questões que a fragilizaram tanto, mas me arrisco em dizer que passa por medo de ser rejeitada pelos amigos novos, medo de confirmar o sentimento que tinha de haver algo de errado com ela, medo do seu corpo que, agora, nada se parecia com aquele que ela possuía quando ia para a escola normalmente, há um ano e meio atrás. Nesta época ela voltou a manifestar seu desejo de ser um “menino trans” e pedia para que todos na escola a chamassem de Arthur. E assim, nós sentíamos que tudo piorava à medida que éramos chamados com frequência na escola, porque ela apresentava um quadro de muita ansiedade, dor no peito, falta de ar, choro repentino e confusão mental, sem muitos motivos evidentes. Estávamos totalmente perdidos, sem saber o que estava acontecendo e consequentemente sem saber o que fazer. E íamos superando as dificuldades dia após dia, sempre com a esperança de que estávamos no caminho certo, ainda que caminhando numa trilha escura e desconhecida… e lá se foi agosto. No início de setembro, ela passou a manifestar sintomas mais severos de desorganização emocional e passou a se sentir bem em estar em situações de risco: pulou o muro de uma casa de desconhecidos para brincar com os pastores alemães e quase foi atacada, manifestava desejo de tomar gasolina ou remédios sem necessidade, se desconectou das pessoas da família, como se não conhecesse ninguém, ficou apática e, nas sessões de terapia, apresentava oscilações de humor muito grandes. Ora felicidade extrema, com grande euforia, ora uma depressão profunda, com grande sentimento de ser ruim, errada e sem conserto. Não demorou muito até o dia em que me ligaram da escola, pois ela havia se automutilado. Cheguei para pegá-la, com a certeza de precisava de muita ajuda e que não precisava de broncas ou olhares meus ou de outras pessoas julgando-a. Neste dia, em conversa com a psicóloga, ela nos informou que nossa filha havia “perdido as bordas” e que corríamos contra o tempo e eventualmente contra alguma doença grave.

Eram muitas as perguntas… e às vezes nem perguntas eu tinha… a única coisa que sabia é que estávamos tentando correr para longe de um diagnóstico de algum tipo de transtorno de personalidade. E eu, lá dentro de mim, só pensava que deveria haver alguma coisa que podia fazer, só que eu não sabia o que. Me lembro de ter crises de pânico, taquicardia, acordada ou dormindo, sentia mesmo que eu estava no inferno, procurando desesperadamente por algo que eu não sabia o que era, mas, tinha certeza de que eu não ia sair daquele lugar, enquanto não encontrasse aquilo que procurava sem saber o que era.

Algo dentro de mim dizia que não era possível que tudo isso estivesse acontecendo só dentro da cabeça dela, que somente o trauma da pandemia e os grupos de pornografia pudessem ter feito algo tão grave… deveria ter algo entre nós, no ambiente familiar, que permitia que ela estivesse tão solta, tão perdida e se sentindo tão só, tão errada e quebrada… Neste momento, decidi que mesmo sem ter a menor noção do que deveria ser feito, mudaria tudo em casa. Como estávamos todos tão perdidos, pensei que deveria procurar profissionais e comecei pedindo ajuda na escola. O professor me recomendou uma pediatra que poderia ajudar e lá fomos nós.

Nunca me esquecerei das palavras mais doces e seguras que ouvi dentro daquele consultório. O sentimento de que havíamos aterrissado em solo firme e que, dali em diante, tinham nos pegado pelas mãos, pairava no ar. Depois de muita conversa e de forma muito lúdica, ouvi a Dra. Dizer: “Vamos começar te dando um remédio antroposófico, que vai te ajudar a se reaproximar das razões que te fizeram vir a este planeta”. De alguma forma, senti que essa ideia nos colocaria em algum caminho, pelo menos! E quando minha filha manifestou, entre muitas outras coisas, que tinha o desejo de ser um menino, a Dra. acrescentou: “Eu acho que você deve ter o direito de ser quem deseja, mas não acho bom que você pense que, para ser quem deseja, precise tomar remédios que prejudiquem a sua saúde ou que precise passar por procedimentos que te machuquem!” Essas palavras me impactaram muito e depois de muito refletir sobre elas, eu me pergunto: em que momento naturalizamos o sofrimento para alimentar o desejo de ser quem acreditamos querer ser? Piercings, tatuagens, silicones, cirurgias estéticas, cirurgias de gênero, hormônios, remédios para emagrecer… quem sou eu para julgá-la? A que custo ela deve ser quem deseja, se eu mesma e toda a sociedade em que estamos inseridas naturaliza a automutilação e o consumo de substâncias perigosas em busca do sonho de encontrar o seu eu real? E uma vez que eu não sou uma referência, seria possível mostrá-la que é possível SER sem precisar se ferir?

Com essa tempestade tão grande pairando sobre nossas cabeças fomos auxiliados pela psicóloga e pela pediatra a tomar algumas medidas simples: estabelecer uma rotina clara para diminuir cobranças sobre a nossa filha, melhorar a organização e limpeza da casa, refeições certas na hora certa e diminuir ao máximo os episódios de muita euforia ou tristeza. O nosso mundo deveria ser morno por um tempo, para que nossa filha pudesse ter a chance de sentir-se bem fora dos limites dos sentimentos. Nenhum excesso, nem de amor, nem de raiva, nem alegria ou tristeza. Nosso desafio era de se manter no meio o máximo de tempo possível.

Outra coisa, TODAS as críticas desnecessárias deveriam ser deixadas de lado por algum tempo: sentar direito, não usar roupas rasgadas, se é menino, se é menina, comer de boca fechada, abaixar o som, mudar a música… qualquer crítica que não dissesse respeito a questões de vida, deveria ser deixada de lado, num intuito de que ela tivesse uma chance de reconstruir sua autoestima. Fora isso, eu e meu companheiro concordamos que deveríamos desacelerar os compromissos pessoais para poder passar mais tempo com a nossa filha. Eu tranquei o mestrado e diminuí a carga horária de trabalho. Ele me ajuda com a casa, e então todos os dias depois da aula eu me dedico a fazer coisas simples e gostosas com a nossa filha. Às vezes, fazer as unhas assistindo Sessão da Tarde, às vezes, comendo chocolate na rua contando histórias engraçadas. Foi-nos aconselhado colocá-la em algum esporte de risco controlado, para dar vazão ao sentimento de perigo que ela parecia gostar de sentir. Uma forma de aproveitar a energia do risco para fazer coisas que pudessem se transformar em superação, melhorando sua autoestima. E lá foi ela se desafiar em manobras incríveis no skate. Na mesma época, o professor sugeriu que ela ingressasse para tocar na orquestra da escola, e lá foi ela se aventurar no ukulele. 

E assim fomos seguindo a nossa vida durante algum tempo. Mais para o fim do ano ela voltou a se sentir bem como “gênero fluido”, e ainda que fosse o Arthur quase sempre, ensaiava alguns looks mais femininos, com muita incerteza. Neste período, passou por maiores oscilações de identidade, com muita insegurança, mas, com menos oscilações de sentimentos. A conversa com a pediatra me pareceu muito importante, porque às vezes é diferente a criança ouvir algo de um profissional, pois perde o teor de implicância que eles podem ter sobre nossos discursos e, muitas vezes eles têm razão.

Nossa filha foi o Akira na internet, depois foi o Arthur na escola. Concordamos que ela precisava viver isso com muito amor e cuidado, uma vez que ainda estava experimentando.

Não aclamamos o Arthur, nem desprezamos. Não o amamos mais, nem menos. Deixamos que ela vivesse essa experiência, como se nada tivesse mudado. Na escola, havia muitas crianças que amavam o Arthur; até as crianças mais velhas, do Ensino Médio, queriam ser amigas do Arthur e o defendiam. E eu acredito sim que ela ganhou grande visibilidade sendo a única “criança trans” da escola e acho essa supervalorização perigosa, considerando as consequências irreversíveis a que essa afirmação pode levar.

Aos poucos, fomos percebendo que o Arthur era um sintoma de algo muito maior e mais complexo, que estava presente na vida da nossa filha e na nossa vida familiar. Que tratar o Arthur como o problema ou como a solução não resolveria, porque, falando de forma figurativa, neste palco da vida da nossa filha, muitas coisas deveriam ser ressignificadas para que o fim dessa história pudesse tomar um desfecho melhor, de forma geral. E, aos poucos, ela foi ficando mais confiante, a cada dia voltava um pouquinho mais feliz da escola, contando coisas divertidas que fazia. Em casa, continuamos fazendo atividades juntas. Na escola, alguns professores montaram um grupo de apoio às crianças que apresentavam sintomas de trauma pós-pandemia. As crianças poderiam, se quisessem, fazer algumas atividades extracurriculares, coisas do tipo grafitar uma parede inteira da escola – um dia ela chegou em casa falando: “Mãe, agora tem um grafite meu gigante na escola, para todo mundo ver”. Em outros dias, poderiam apresentar para os colegas algo que sabiam fazer e ensinar, tipo dar uma aula de skate, culinária etc.

E então, fomos assistindo a vida surgir novamente. Me parece que quanto mais segurança

dávamos a ela, sem criticar suas escolhas, mais forte ela ia se sentindo para experimentar estar em seu gênero em algumas situações, mesmo que logo retornasse. E ainda que sentíssemos que ela não era mais a mesma criança – o que considerávamos um misto de trauma com o fato de a nossa criança estar crescendo – em alguns momentos pude identificar alguns traços da personalidade dela que haviam desaparecido e que eu já nem me lembrava mais… porém, estavam reaparecendo.

É surpreendente ver ressurgir uma personalidade, porque sei que não é consciente que isso se faz. E então eu compreendi que algumas coisas podem até sumir por completo em nós, e talvez nunca retornem, mas essa não é uma regra. E eu posso dizer que eu amo reencontrar traços antigos dela e matar as saudades.

Um dia, estávamos conversando só nós duas e ela me perguntou o que eu achava do Arthur, e eu disse com muito respeito: “Eu acho, e o que eu acho não é a verdade absoluta, portanto eu posso estar enganada, que no começo do semestre o Arthur chamou muita atenção quando chegou na escola, as pessoas queriam saber quem era o Arthur, apoiar o Arthur e o Arthur ganhou muitos amigos e amigas de várias idades. Agora, o ano está quase chegando ao fim e o Arthur continua cheio de amigos. E sabe de uma coisa, filha, todas essas pessoas que são suas amigas ou amigos gostam de você porque você é uma criança incrível, engraçada, feliz, inteligente, que luta pelo que é correto, pelo que é novo e diferente, está sempre disposta a dar um ombro a quem está precisando. Isso é você, independente do nome que te chamam ou da roupa que você usa, você é essa criança incrível e é isso que te faz ter tantos amigos legais!” Não houve muito mais conversa depois disso, houve um sorriso e um silêncio.

Durante as férias ela, de forma bem reservada, explorou alguns looks femininos, às vezes bem extravagantes, às vezes bem sensuais. Cada hora de um jeito, parecendo ainda insegura em se expor, parecia que tinha muito medo quando decidia se vestir “de menina”. No final das férias, escolheu um novo nome, Lua, e devagarzinho ela vem desbravando essa nova pessoa, que às vezes gosta de shorts largo e camiseta e às vezes gosta de cropped e jeans. Por hora é a Lua crescendo, experimentando um jeito de ser, de se sentir segura num mundo totalmente pirado. Hoje eu entendo, a partir das experiências que vivi, que o meu papel de mãe é prover alicerce, enquanto me for possível, para que ela busque dentro de si um jeito saudável de viver a sua era, o seu tempo, do seu jeito. E, portanto, me resta torcer para que ela entenda e acredite que não é necessário se mutilar ou prejudicar a sua saúde para ser quem gostaria, em circunstância nenhuma.

A Lua é um ser humano do século XXI, passou por uma pandemia, deixou a cidade, o bairro, a praça e a casa que conhecia como lar. Os amigos, os passeios, o corpo de criança… hibernou durante 1 ano e meio… durante esse período foi violentada psicologicamente por pessoas extremamente doentes, que seguem destruindo vidas de tantas outras crianças, todos os dias, enquanto seus pais acham que elas estão seguras deitadas no sofá da sala. Se sentiu errada, quebrada, sem conserto… inútil, ruim e sozinha. Quando por fim pôde sair da caverna, tinha esquecido quem era… seu corpo não era mais o mesmo, sua voz não era mais a mesma, sua casa, seus amigos, suas referências… Não conseguia compreender como poderia se conectar novamente com o mundo, uma vez que não sabia mais quem era…

No meu entendimento, que pode estar equivocado, neste caso específico, o Arthur foi um grito desesperado por sobrevivência, sugerido por uma fantasia contada sabe-se lá por quem, sobre um mundo perfeito que não existe (em nenhuma hipótese, diga-se de passagem), mas que parecia ser a sua última chance, em tempos de desespero. E então eu paro para pensar: num momento de extrema vulnerabilidade, não é difícil compreender que um jovem traumatizado, sexualizado por uma sociedade doente, deixado vulnerável pelos seus pais, em sofrimento, se sentindo errado e quebrado queira pôr um fim em si mesmo, queira inventar um outro novo, diferente de tudo o que o antigo significa. E ainda que eu ache que isso seja impossível, de fato, outras questões me alertam: considerando que essa decisão de inventar uma nova pessoa seja fruto do desencadeamento de um trauma terrivelmente equivocado, uma vez que, ao longo de sua vida, minha filha jamais manifestou questionamentos, desconfortos ou sofrimentos sobre seu corpo, como posso eu, mãe, acreditar que um novo nome, um novo look, o sonho de uma cartela de hormônios e alguns procedimentos cirúrgicos darão conta de fazê-la superar os grandes desafios impostos pela vida? 

Obviamente que eu não estou aqui a dizer que todas as crianças que não se identificam com o seu gênero de nascimento passaram pelo trauma e sofrimento que a minha filha passou. Também levo em consideração que existem crianças que manifestam questionamentos desse tipo desde uma infância muito tenra, o que também não é o nosso caso. E tantos outros casos diferentes. Mas, especificamente no meu caso, porque foi mesmo que eu disse sim de cara a ela, sem sequer refletir sobre as circunstâncias que a faziam pensar que, de repente, inventar um outro eu seria melhor? Sem pensar precedentes ou consequências, me ocorreu seguramente que este era o caminho que a faria feliz, a qualquer custo e pronto. Por outro lado, penso, quantas crianças não passam por inseguranças nesta fase da vida? Quantas delas não se aventurarão nesse infinito mar de possibilidades de LGBTQIA+? E que bom! Mas devemos estar alertas e manter uma margem de segurança sobre aquilo que torna definitivo uma escolha. E mais do que nunca, precisamos parar para refletir se continuaremos criando ou aceitando padrões estéticos mirabolantes, comprometendo emocionalmente cada geração, para posteriormente a medicina e a indústria farmacêutica oferecerem a possibilidade de adequação ao padrão, como uma forma de cura para um problema visivelmente fabricado e imposto. Faremos da cirurgia de gênero o milagre da nova geração, assim como fizemos dos eternos seios jovens o milagre da nossa? Faremos das “eternas cartelas de hormônios de transição de gênero” a hóstia para o reino dos céus, assim como os remédios para emagrecer foram para a nossa geração? Nossa luta deve ser para que não.

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Perguntas da nossa campanha para você

  1. A filha da nossa leitora foi submetida, com apenas 10 anos de idade, a conteúdos pornográficos de extrema violência. O que isso ensinou a ela sobre o que é ser menina e mulher hoje? Como podemos lutar contra a pornificação da infância, a qual atinge também os meninos?
  2. Ela também foi influenciada por uma “criança trans” que conheceu no Discord, que pode ser uma criança realmente rotulada como tal ou um adulto se passando por uma. Você ainda acredita que a explosão repentina de crianças e adolescentes se autodeclarando “trans”, “não-binários”, “gênero fluido” e outros rótulos no século 21 nada tem a ver com a internet e o fato de que, sobretudo nessa idade, somos altamente influenciáveis?
  3. “Lua” também se queixou aos pais da maior liberdade da qual o sexo oposto usufrui (e muito provavelmente a maioria de nós mulheres já fez o mesmo!). A família, bem orientada, conseguiu lidar com isso de uma maneira não-medicalizada: esportes radicais, flexibilidade em relação a roupas, grafite. Como podemos, agora enquanto sociedade, também canalizar esta justa demanda das garotas por liberdade de uma maneira positiva?
  4. Nossa leitora e seu marido restringiram o uso de internet de sua cria; contudo, você sabe que muitos pais contam que não conseguem fazer o mesmo. O que esse “desempoderamento” ensina sobre os adultos do século 21 e como podemos, se é que podemos, manter as crianças seguras depois do advento da internet?
  5.  A filha da nossa leitora tornou-se popular na escola depois de criar “o Arthur”; felizmente, a família não a expôs na mídia. Se você tem o hábito de ler relatos de crianças e adolescentes que se declaram “trans” e são exibidos por suas famílias, sabe que pais e filhos ganham fama imediata; chovem seguidores nas redes sociais, convites para entrevistas em programas de TV, jornais e lives e a criança é colocada em contato com inúmeros adultos desconhecidos (perigo!). Ou seja, a criança anônima, muitas vezes solitária, confusa ou triste, se torna subitamente uma estrela e uma pequena “autoridade” em “gênero” e seus pais viram heróis que “apóiam suas ~crianças trans´”. O quanto esse love bombing (“bombardeio de amor”), seja o praticado de forma involuntária por pessoas bem-intencionadas ou enquanto técnica consciente por outras, não contribui para a manutenção de uma “identidade trans” ao longo dos anos?
  6. Ainda que seja difícil, senão impossível, impedir que uma criança, jovem ou adulto se submeta a hormonizações e cirurgias irreversíveis no futuro, o casal tomou diversas medidas que podem ter sido cruciais para que “Arthur” desaparecesse para dar lugar à “Lua” (e eu apostaria que em breve a “Lua” será substituída pela identidade real da menina). Além das citadas cima e das mudanças radicais na rotina familiar, eles escolheram profissionais de saúde que foram, pelo que vemos, muito cuidadosos. A história poderia ter tido um final bem diferente se a nossa jovem tivesse sido levada a um (a) profissional adepto (a) do “modelo afirmativo de gênero” como aconteceu com “Leo”, a garota cuja história você deve ter visto no nosso mais recente vídeo no Youtube e que também se declarou um “menino trans” nessa idade. Considerando que o modelo dito “afirmativo” é o adotado ou tolerado por profissionais do SUS, mesmo contrariando a legislação federal sobre esterilização voluntária e princípios básicos de proteção da infância, como podemos garantir que o atendimento cuidadoso que “Lua” recebeu dos profissionais esteja acessível a todas as famílias brasileiras?