Caros e caras,

por uma ironia do destino, logo depois que o conto abaixo foi publicado no site, evidenciando a situação surreal em que vivemos, a nossa conta do Instagram foi “surrealmente” suspensa. Eu recorri, mas, por via das dúvidas, estou logo informando a vocês.

Insisto na importância de garantirmos, na medida do possível, a nossa autonomia diante das redes sociais, inscrevendo-se e convidando outras pessoas a se inscreverem em sites como o nosso.

Abraços,

Eugênia Rodrigues

Jornalista

Porta-voz da campanha No Corpo Certo.

 

O processo

 

(Inspirado no livro “O processo”, de Franz Kafka, e em casos ocorridos em universidades, escolas, shoppings e similares no Brasil e no mundo).

 

Maria S. acordou com fortes batidas na porta do pequeno quarto do barraco. Mal se sentou na cama e a porta se abriu. À sua frente, estavam dois policiais.

– Maria Silva?

Ela ficou olhando para eles sem entender nada.

– A senhora é terceirizada na Federal, né. Faxineira.

Ela assentiu com a cabeça, ainda espantada demais para falar alguma coisa.

– A senhora está presa.

– Presa?! – Ela repetiu, esfregando os olhos e cogitando que, talvez, estivesse sonhando (ou, melhor, pesadelando).

– É. Tem um boletim de ocorrência contra a senhora por “transfobia”.

– “Trans” o quê?

– “Transfobia”. A senhora disse que um homem é um homem.

O policial mais novo olhou para o mais velho com raiva e rosnou: “mulher trans!”; o mais velho fingiu que não ouviu. (O mais novo tinha participado do treinamento dado por uma ONG LGBT sobre “gênero e diversidade”. Como detestava mulheres, comemorava secretamente cada vitória do transativismo. Aliás, quem paga por esses treinamentos é você, tá).

Maria se levantou da cama, sem se importar com o fato de que trajava uma camiseta comprida, velha e furada deixada pelo pai de seus filhos, que tinha dado no pé.

– É aquele aluno, o Wellington, né, moço?

– Dandara! – corrigiu o policial mais jovem, agressivamente. O mais velho deu uma risadinha e soltou:

– Cuidado que se a senhora falar o nome dele novo a pena aumenta.

– O nome DELA é DAN-DA-RÁ! – gritou o mais jovem, furioso.

– A gente vai esperar a senhora se trocar aqui no corredor e te leva pra delegacia – finalizou o mais velho, fechando a porta do quarto atrás de si.

Maria se arrumou rápido. Lembrou que tinha visto em algum filme quem os presos têm direito a uma ligação, mas não tinha crédito no celular. Despediu-se dos quatro filhos, agradecendo a Deus mentalmente por ser feriado de Finados e eles estavam tão entretidos com a TV que aceitaram a desculpa dela de que os policiais a estavam levando porque alguém estava tentando clonar seu cartão de crédito (coisa que ela nem tinha. Só de débito). Avisou que tinha comida pronta na geladeira e então lembrou que não tinha pago a conta de luz e rezou para que a luz não fosse cortada enquanto ela estava na delegacia e o pouco que tinha na geladeira estragasse.

A viagem para a delegacia aconteceu em silêncio. O policial mais novo estava exultante em prender uma mulher por “transfobia” e mal podia se conter para contar o ocorrido para os amigos e ganhar muitos likes. O mais velho estava constrangido. Chegando lá, Maria foi levada à sala do delegado pelos policiais, que a acomodaram na cadeira diante da autoridade e permaneceram de pé.

O delegado estava de mau-humor. Casos de homicídio, assaltos, estupros e agressões se acumulavam enquanto boletins por coisas absolutamente idiotas ou sem sentido eram abertos todos os dias por adolescentes e outros nem tão adolescentes com tempo de sobra e que infelizmente tinham internet. Pra piorar, o tal Wellington tinha mobilizado uma multidão de estúpidos em suas redes sociais para pressionar os órgãos públicos exigindo “Justiça para Dandara” e “o fim da transfobia na universidade”.

– Dona Maria, aqui diz que a senhora chamou um estudante “trans” de homem.

– O Wellington? Mas ele é homem, doutor. Quer dizer, é um rapaz, né. Deve ter seus vinte anos, ainda, é novinho. Eu conheço ele desde que ele entrou na faculdade, era um menino bonzinho, até.

– O Wellington agora diz que é mulher, dona Maria. E que a senhora questionou ele quando ele entrou no banheiro feminino da faculdade e ainda chamou ele pelo “nome morto”.

– Quem tá morto?! perguntou ela, atarantada.

– Ninguém morreu, Dona Maria. É assim que esses caras chamam o nome que os pais deram pra ele, sacou? O nome antigo, chama “dead name” em inglês. O nome dele de homem.

O policial mais novo mordeu os lábios para não criticar o chefe. O mais velho segurou uma risada.

– Tá… mas o senhor tá querendo me dizer que se ele falou que é uma mulher então ele é uma mulher? É isso?

– É, Dona Maria. Quer dizer, ele não é, mas agora a gente tem que fingir que é, valeu? Agora ele se chama Dandara. E a Dandara pode botar a senhora, que é preta, na cadeia pelas penas do crime de racismo, olha a ironia.

– Racismo?! – ela estava admirada. – Mas eu nem falei nada de raça… E também, o que eu podia falar? Eu sou preta também…

– Mas uns advogados aí inventaram que quem não finge que homem é mulher e mulher é homem tem que ser processado por essas penas aí e parece que colou, dona Maria. É o tal do ativismo judicial. Negócio é o seguinte, ele registrou um boletim de ocorrência, o pessoal dos Direitos Humanos tá no meu pé e eu tenho que fazer alguma coisa. Ordens são ordens.

– E os meus Direitos Humanos, doutor?

– Mulher não é ser humano, dona Maria. Mulher é a projeção que tá na cabeça desses caras. Uma ideia, sacou?

– Pois eu vou atrás de um grupo de advogadas feministas que eu vi na internet.

– Ih, a maioria das feministas desses coletivos aí também finge que homem é mulher. Dá mais dinheiro, livra elas de encheção de saco… Aliás é engraçado, né, porque se mulher não é fêmea o “fem” de feminismo vem de onde?

Deu uma gargalhada, sendo acompanhado pelo policial mais velho. O mais novo bufou, mas continuou quieto.

– Então eu vou atrás do movimento negro. Lá na universidade tem um coletivo negro que…

– Eles também fingem, Dona Maria. Tá geral vendido. Aliás, outro dia eu vi um militante chamando negros de “negres”, hahaha.

– Então… então… eu tenho que falar com a Defensoria Pública? Eu não tenho dinheiro pra pagar advogado, doutor…

– As Defensorias também fingem. Eu acho que o máximo que eles vão fazer por você é conseguir uma pena alternativa… a senhora faz um serviço comunitário…

– Doutor, eu trabalho de segunda a sexta o dia todo. Eu saio de casa às 5h pra começar a lavar os banheiros da Federal às 7h. Chego em casa e vou cuidar de casa, criança… Sábado eu faço faxina em casa de família e domingo é o dia em que eu lavo roupa, limpo a casa, adianto a comida da semana, vou no mercado, na feira… Eu não tenho tempo pra fazer serviço voluntário não!

– Não sei não, mas acho que é o melhor que a senhora vai conseguir.

– Mas doutor delegado, isso não faz sentido nenhum. Eu tô sendo presa porque eu não fingi que um homem é mulher? E outra coisa, as estudantes da Federal, elas não contam? Elas não querem ele lá não. Uma ou outra diz que não liga, mas a maioria não quer ele lá não e homem nenhum, de vestido ou sem vestido.

– Não fui eu que inventei que “transfobia” existe, Dona Maria. Foram eles. Mas basicamente é isso aí, é pra punir quem não quer fingir. Outro dia foi um segurança de Maceió que foi condenado, a senhora soube? Nessa hora ninguém aparece pra “defender os direitos dos trabalhadores”… Mas eu tenho uma notícia boa para a senhora.

– Qual?

Ele respirou fundo, fazendo suspense.

– Qual, doutor? – insistiu ela, esperançosa.

– O vídeo de vocês dois batendo boca no banheiro tá bombando no Mídia Ninja.